O anúncio do reboot de Superman – O Filme (1978) deixou a maior parte dos viciados em cultura pop em estado máximo de atenção. O clima esquentou ainda mais depois que foram confirmados os nomes e as funções da equipe envolvida no filme. Com uma história criada por Christopher Nolan, diretor de Amnésia (2000), da trilogia do Cavaleiro das Trevas (2005, 2008, 2012) e de A Origem (2010), e roteiro de David S. Goyer, responsável por elaborar o novo Batman ao lado de Nolan, além de todos Blade (1998, 2002, 2004) e do cult Cidade das Sombras (1998), o novo longa ganhou direção de Zack Snyder, realizador do remake de Madrugada dos Mortos (2004), 300 (2006), Watchmen (2009) e Sucker Punch (2011).
Com um time desses, seria praticamente impossível Homem de Aço dar errado. E deu certo. Muito certo! O motivo principal é claro: a origem do super-herói foi analisada de forma muito mais consistente neste filme do que em qualquer um dos anteriores. O atual roteiro expõe as raízes extraterrestres de Kal-El ao mesmo tempo em que reflete os medos, ecoa as dificuldades e focaliza as motivações de Clark Kent na Terra.
Sem saudosismo e homenagens vazias a um passado cinematográfico distante, a atual produção recria todo o universo do herói, a começar pela aniquilação do humor presente nos longas lançados entre as décadas de 1970 e 1980, e também pela valorização de um realismo simbólico e narrativo nítido. Assim, imprime um peso adequado ao intrincado contexto do alienígena de fenótipo humano que virá a se tornar Superman.
Um novo Clark
Nas produções lançadas em 1978, 1980, 1983 e 1987, a dualidade Kal-El/Clark Kent supostamente estabelecida durante a infância do personagem é negligenciada pelos roteiros. O conflito provindo desta psique dupla não existe neste período inicial de sua vida. Os longas, principalmente os dois primeiros, suplantam esta dubiedade na fase infantil, passando rapidamente pela adolescência e privilegiando o binômio Clark Kent/Superman da fase adulta.
Agora, não. Ao propor um background kryptoniano bastante efetivo e um adensamento psicológico e motivacional terráqueo muito adequado, Nolan, Goyer e Snyder promoveram não apenas a explícita humanização do herói extraterreno a partir de sentimentos e desafios demasiadamente humanos como também uma maior (e natural) identificação do personagem com o público. Não à toa, o título do novo filme é “Homem de Aço” e não “Superman” – já que, nele, o “homem” ganha tanta ou mais importância do que o “super”.
Sóbrio, por vezes deliberadamente sério, o longa repassa os momentos finais de Krypton, a difícil infância de Kal-El/Clark (Henry Cavill) na Terra e sua adolescência questionadora. O enredo faz questão de lembrar que o garoto é um extraterrestre deslocado em um ambiente alienígena, em processo de adaptação, autoconhecimento e autocontrole, rodeado por tantos que são tão diferentes dele.
Uma cena reveladora, que se passa na escola em Smallville, mostra Clark tendo que lidar com suas audição e visão fora do comum mesmo sem saber qual a natureza de sentidos tão aguçados. Ao mesmo tempo, sofre a rejeição de colegas justamente por ter um comportamento atípico.
De forma clara, o enredo indica que durante seu desenvolvimento traumático o personagem precisa tanto reprimir seus superpoderes quanto definir uma identidade própria. Em outras palavras, deve abdicar do que há de mais unicamente seu para assumir algo (ser alguém) que realmente não é.
Mas o roteiro vai além: projeta a vida adulta errante de Clark em busca de um lugar em um mundo que não lhe pertence, mas que decidiu adotar para si e que, posteriormente, fará o movimento inverso para abraçá-lo como se o kryptoniano, já na pele de Superman, fosse um homem como outro qualquer.
Esse processo de definição identitária e esse movimento de posse e renúncia, de entrega e devolução, tornam-se recorrentes entre personagem e mundo durante o filme – e se estabelecem como artifícios muito interessantes do roteiro, que virão a fundamentar as futuras ações do próprio super-herói no desfecho do longa.
No realismo proposto por Homem de Aço, Henry Cavill foi direcionado a uma atuação discreta e contida, bem diferente das marcações extremas estabelecidas por Christopher Reeve.
Um novo Krypton
A parte inicial do longa já dá a medida certa do imaginário concebido por Nolan, Goyer e Snyder e seu intuito de desvincular totalmente a nova produção das anteriores. Krypton, totalmente repaginado, obtém uma grande proporção dentro do filme, gerando traços conceituais que vão se estender pela trama.
O planeta não tem o tom alvo, asséptico e gélido dos filmes anteriores. Pelo contrário. É quente, terroso e tomado por formas orgânicas. Esteticamente, lembra uma sinergia entre a obra do arquiteto catalão Antoni Gaudí e as macabras imagens do surrealista suíço H. R. Giger, criador do monstro do filme Alien (1979).
Krypton está condenado, imerso no caos e prestes a ser consumido pelo próprio núcleo. Em meio ao fim inevitável, o General Zod (Michael Shannon, furioso) tenta dar um golpe de Estado dissolvendo um conselho administrativo e enfrentando Jor-El (Russell Crowe, ótimo), o cientista visionário que previu a destruição do planeta e que, por isso mesmo, planejou a salvação do filho, Kal-El, juntamente com o Códex, uma espécie de DNA kryptoniano. E aqui surge uma interessante novidade.
Kal-El é o primeiro bebê a nascer naturalmente em Krypton em séculos, estando assim destinado a ter um futuro livre, independente. Todas as outras crianças tiveram gestação e nascimento artificial, tendo seus futuros pré-determinados no momento da concepção, como os próprios Zod e Jor-El – situação que lembra o clássico literário Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e também o filme Matrix (1999), de onde saiu a solução visual adotada por Homem de Aço.
Um novo deus
Jor-El quer manter a liberdade do filho e o senso de esperança a que remete o “S” que ambos exibem no peito enviando-o a outro planeta. Liberdade e esperança são, também, dois fatores essenciais que moldarão a personalidade de Clark na Terra sob orientação dos pais adotivos Jonathan (Kevin Costner, muito adequado no papel) e Martha (Diane Lane). São essas duas das características pessoais que humanizam o alienígena Kal-El – e que, por sua vez, contribuem para traçar o discutido (e antigo) paralelo existente entre o personagem e Jesus Cristo.
Homem de Aço intercala presente e passado para dimensionar Kal-El-Clark Kent-Superman e lança mão de diversos recursos visuais e narrativos para situar a extensa mitologia não apenas do super-herói como também da raça kriptoniana e sua expansão pelo cosmo (simbolizada, por exemplo, pela Fortaleza da Solidão).
É este o rastro que leva Zod à Terra na procura por Kal-El e pelo Códex perdido a fim de reconstruir Krypton – fato que remete ao conceito divino de “criação”. O formato cênico para contar parte dessa história é uma bela homenagem à obra de Georges Méliès, por sua vez considerado um dos criadores do próprio cinema.
Uma nova Lois
O filme também dá um peso muito maior a Lois Lane (Amy Adams), que assume um papel central na descoberta de Clark como um alienígena, na sua decisão de assumir a persona de Superman definitivamente e também no encadeamento de algumas cenas de ação. Estas, por sinal, são algumas das mais incríveis já vistas na telona. As batalhas homéricas em Smallville e Metrópolis enchem os olhos e fazem o público prender a respiração. Já o combate final entre o Homem de Aço e Zod é provavelmente o maior duelo já encenado em filmes de aventura.
O primeiro encontro entre Clark e Lois Lane, por sinal, foi totalmente remodelado. Ocorre em uma situação adversa, o que contribui para o desenvolvimento da relação amorosa entre eles durante o filme. Já a parceria profissional no Planeta Diário tem início apenas no final do filme, quando Clark explica o motivo de ter escolhido a profissão de jornalista, dando sinais de que Superman seguirá vigilante…
Um novo filme
… vigilante para o já anunciado Homem de Aço 2.
Em entrevista ao Omelete, o próprio Zack Snyder comentou sobre o longa: “Você viu os logos da Lexcorp e da Wayne Enterprises… tem coisas por aí. Há muitas possibilidades para o próximo filme. Juntá-lo com o Batman antes da Liga, sei lá. Tudo é possível agora. E Lex está por aí, fazendo sabe-se lá o quê. Não se esqueça disso!“.
Não esqueceremos!