In Memoriam :: Bernardo Bertolucci (1941-2018)

Publicado por
Marcelo Müller

Para boa parte dos admiradores do cinema italiano, com a morte de Bernardo Bertolucci, em 26 de novembro de 2018, de causa não divulgada, perdeu-se o último mestre dessa cinematografia que já foi, seguramente, a mais importante do mundo. E quem há de duvidar que o outrora menino nascido na cidade de Parma, no seio de uma família inclinada às artes, não foi realmente semelhante, em estatura, aos grandes que o precederam, como o amigo de longa data Pier Paolo Pasolini? Bernardo Bertolucci era filho do poeta e crítico de cinema Attilio Bertolucci e da professora Ninetta Giovanardi. Antes de sonhar em construir uma carreira cinematográfica, alcançou um êxito considerável enquanto poeta. Seu livro Em Busca do Mistério chegou a vencer o Prêmio Viareggio, uma das láureas mais importantes da literatura italiana. De espírito combativo, Bertolucci era um defensor ferrenho das causas do Partido Comunista. Não à toa, seus obituários na imprensa italiana o colocaram, além de poeta, cineasta, produtor e roteirista, como um notório polemista. Pode-se dizer tudo sobre ele, menos que suportaria a indiferença.

A entrada no cinema se deu com Pier Paolo Pasolini, de quem se tornou próximo. Foi em Accatone: Desajuste Social (1961) que Bertolucci tomou gosto pela Sétima Arte, trabalhando como assistente de direção. No set, conheceu a atriz Adriana Asti, com a qual acabou se casando. Depois disso, largou os estudos de literatura moderna na Universidade de Roma a fim de se dedicar prioritariamente às suas novas paixões. No ano seguinte, impulsionado por Pasolini, mas bancado pelo interesse do produtor Tonino Cervi, que vislumbrava nele um talento emergente, Bertolucci estreou na direção de longas-metragens com A Morte: La Commare Secca (1961), cujo enredo se passa na periferia de Roma, onde o corpo de uma jovem prostituta brutalmente assassinada é encontrado. A polícia interroga diversos suspeitos para descobrir a verdade. O filme é influenciado por Rashomon (1950), de Akira Kurosawa. A crítica, no entanto, não foi favorável. A notoriedade veio com Antes da Revolução (1964), transposição às telonas do romance A Cartuxa de Parma, do francês Stendhal. Foi considerado um dos marcos no novo cinema italiano.   

Mesmo que tenha recebido esse amplo reconhecimento com seu segundo filme, Bernardo Bertolucci permaneceu cinco anos sem dirigir longas depois dele. Nesse meio tempo, realizou alguns documentários curtos, foi assistente de direção de Julian Beck, e um dos roteiristas do clássico Era Uma Vez no Oeste (1968), obra-prima de Sergio Leone, na qual dividiu os créditos com o diretor e com o também cineasta Dario Argento (que trio, hein?). Depois disso, dirigiu outro dos exemplares que os especialistas consideram um dos pilares de sua carreira. O Conformista (1970), adaptado de um romance de Alberto Moravia, se passa na Itália fascista e se foca num personagem que aceita trabalhar para Mussolini, acentuado sua conformidade ao se aproximar de uma jovem do regime totalitário. A produção foi laureada no Festival de Berlim de 1970, venceu o Prêmio David di Donatello de Melhor Filme e teve seu roteiro indicado ao Oscar na categoria Melhor Roteiro Adaptado. Na sequência, afirmou seu gosto pelos grandes literatos, dirigindo o elogiado A Estratégia da Aranha (1970), baseado nos escritos de Jorge Luís Borges.

Jean-Louis Trintignant em “O Conformista”

Em 1972, sua produção mais controversa, Último Tango em Paris, drama romântico e existencial, estrelado pelo experiente Marlon Brando e pela iniciante Maria Schneider. Considerado outro filme raro, mostra um relacionamento repleto de violência e tensão sexual, marcado pelo caos emocional. O filme, que rendeu a Bertolucci a indicação ao Oscar de Melhor Direção, provocou muita polêmica na época de seu lançamento, sendo previamente censurado em vários países. Com fotografia do mítico Vittorio Storaro e diálogos adicionais escritos por Agnès Varda, Último Tango em Paris ainda contou com a trilha sonora composta pelo argentino Gato Barbieri, tornado uma celebridade pela excelência de seu trabalho. Mas, a controvérsia não ficou circunscrita ao período. Maria Schneider disse em várias entrevistas ao longo dos anos que se sentiu sexualmente humilhada durante as filmagens, que esse papel era seu único arrependimento verdadeiro. Ela chegou a afirmar que considerava Bertolucci “um gângster e um cafetão”. Em 2016, o próprio cineasta retomou o assunto, falando especificamente da famigerada cena da manteiga, em que o personagem de Brando sodomiza sua parceria. Ele confessou que a atriz não sabia do conteúdo, que tinha combinado ele apenas com Brando “para fazê-la reagir como menina, não como atriz.”. Bertolucci disse que se sentia culpado pelos efeitos disso, mas não necessariamente arrependido da atitude.

Na sequência, duas produções igualmente emblemáticas, embora de escopos díspares. Primeiro, o épico Novecento (1976), com Gérard Depardieu e Robert De Niro, retrospectiva da história italiana, do início do século XX ao término da Segunda Guerra Mundial. Com mais de cinco horas de duração, contrastava fortemente com o intimismo de seu sucessor, La Luna (1979), realização bem mais modesta. Versátil, Bertolucci se consagrou em Hollywood, depois de outros filmes menos incensados, com O Último Imperador (1987), vencedor de nove Oscars, incluindo os de Melhor Filme e Melhor Direção. Depois veio O Céu Que Nos Protege (1990), no qual contou com interpretações excepcionais de Debra Winger e John Malkovich. O Pequeno Buda (1993), no sentido oposto, não foi lá muito elogiado, sendo indicado ao Framboesa de Ouro de Pior Revelação (Chris Isaak). Beleza Roubada (1996) é frequentemente mais lembrado como o filme de estreia de Liv Tyler. Foi apenas com Os Sonhadores (2003) que Bertolucci pareceu ter voltado à grande forma, revolvendo os escombros de maio de 68 numa Paris tão cinéfila quanto politizada. Seu último filme foi Eu e Você (2012), dirigido já com a saúde debilitada, preso a uma cadeira de rodas que o limitava.

Bernardo Bertolucci sempre será lembrado como um cineasta ousado, politicamente engajado, a despeito das controvérsias, um realizador corajoso, afeito a experimentações mesmo em grandes produções, com movimentos de câmera sofisticados e roteiros detalhistas. Realmente, sua obra fica para a posteridade como uma das mais sólidas da Itália.

Marlon Brando e Maria Schneider no controverso “Último Tango em Paris”

Filmes Imprescindíveis: O Conformista, exemplo vibrante de como Bertolucci podia ser incisivo numa história íntima e socialmente ampla ao mesmo tempo; Último Tango em Paris, retrato único das vicissitudes sexuais, amorosas e existenciais de um casal envolto num amor refratário aos rótulos fáceis.

Primeiro Filme: A Morte: La Commare, duramente criticado no ano de sua estreia, mas relido ao longo dos anos a partir, inclusive, da carreira de Bertolucci, dos sintomas já nele existentes da excelência que depois se consolidou.

Último Filme: Eu e Você, considerado obra menor numa carreira repleta de filmes artisticamente maiores. Mesmo assim, foi indicado a diversos prêmios.

Oscar: Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado na cerimônia de 1988 por O Último Imperador. Indicado ao Oscar de Melhor Direção por Último Tango em Paris e de Melhor Roteiro Adaptado por O Conformista.

Frase: “O cinema é uma maravilhosa máquina do tempo: é possível apresentar aos jovens de hoje os jovens da década de 60, que tinham um objetivo pelo qual lutar“.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)