As produções que compõem a filmografia de Sir David Lean são geralmente divididas entre duas fases: prosaica e épica. Ainda que tenha dirigido apenas 16 longas-metragens ao longo de uma carreira que cobre 40 anos, o cineasta permanece como um dos mais renomados realizadores britânicos, com uma obra que ora retrata a sensibilidade de uma era a partir de seus protagonistas comuns, ora apresenta dramas grandiloquentes e extravagantes com heróis tão incomuns quanto inesquecíveis.
David Lean nasceu na primeira década do século XX, em 1908, em Croydon, localizada na região atualmente conhecida como Grande Londres. Filho de Francis William le Blount Lean e Helena Tangye Lean, ele era um jovem sonhador que abandonou a escola na metade da adolescência para ingressar como aprendiz na empresa de seu pai, dedicada à contabilidade. Antes disso, aos dez anos, Lean foi presenteado por um de seus tios com uma câmera Brownie, na qual capturava imagens e as revelava – hobby que se estendeu por toda sua juventude. Aos 16 anos, no entanto, sua vida seria transformada e transtornada quando seu pai abandonou a família para viver um relacionamento com outra mulher – padrão que o cineasta repetiria mais de uma vez em sua vida adulta.
Em 1927, cansado de seu trabalho e instruído a procurar por uma nova atividade, a faceta transgressora do jovem David fez com que ele passasse uma tarde escondido no cinema. Entusiasmado e certo de que “aquilo” era o que mais gostaria de fazer profissionalmente, ele conquistou um trabalho não remunerado nos tradicionais estúdios Gaumont. De garoto do café para garoto da claquete, em menos de três anos ele fora promovido para terceiro assistente de direção e elevado à posição de editor das notícias na época exibidas nos cinemas (as chamadas newsreels). Familiarizado com a sala de edição, montou seus primeiros longas, como These Charming People e Insult, no início da década de 1930 – e viria a assinar a montagem de quase 25 filmes até 1941, quando migrou da sala de edição para a cadeira de diretor.
O primeiro longa-metragem assinado por David Lean como diretor foi Nosso Barco, Nossa Alma (1942), função que compartilhou com Noel Coward. Um ano antes, no entanto, ele já havia auxiliado Gabriel Pascal na condução de Major Barbara (1941), porém não recebeu crédito de direção pela comédia. Seus três trabalhos seguintes foram adaptações cinematográficas para peças de sucesso de Coward: Este Povo Alegre (1944), Uma Mulher do Outro Mundo (1945) e Desencanto (1945), este último indicado a três Oscars, incluindo Melhor Diretor e Roteiro – as primeiras nominações da Academia da carreira de Lean – e ao Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Nas obras, narrativas distintas apontavam conflitos familiares e de relacionamento com um olhar para questões sociais pertinentes e valores como confiança, fidelidade, lealdade e liberdade.
Enquanto os primeiros créditos de David Lean como diretor ocorriam na mesma época em que acontecia a Segunda Guerra Mundial, as temáticas de seus filmes eram consequente e diretamente influenciadas ou limitadas – o que jamais afetou a qualidade artística de suas obras. O cineasta realizou na sequência duas adaptações para clássicos de Charles Dickens, Grandes Esperanças (1946) e Oliver Twist (1948), aclamados sucessos de público e crítica. O primeiro impressionou pelo estilo visual do cineasta, seu uso de luz e som a serviço de uma narrativa impressionista, que o levaram a duas novas indicações ao Oscar de roteiro e direção. Em contrapartida, o segundo causou controvérsias quando o diretor, a partir de seu personagem principal, foi acusado de antissemitismo. Alguns cortes depois e o filme permanece como uma das mais consagradas adaptações do clássico texto sobre o garoto órfão.
No fim dos anos 1950 Lean se encontrava em seu terceiro casamento (de um total de seis), época em que escalou sua então esposa, Ann Todd, para seus filmes seguintes. A História de uma Mulher (1949), baseado em livro de H.G. Wells e mais uma vez indicado ao Grande Prêmio do Júri em Cannes, foi o primeiro deles, acompanhado por As Cartas de Madelaine (1950) e Sem Barreira no Céu (1952). Depois de outro divórcio que o deixou à beira da falência, o cineasta elegeu o excepcional Charles Laughton como protagonista de Papai é do Contra (1954), pelo qual venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim. Com uma coprodução entre Estados Unidos e Inglaterra garantida, o cineasta realizou Quando o Coração Floresce (1955), uma agridoce narrativa protagonizada por Katharine Hepburn que o levou a uma nova indicação ao Oscar de Melhor Diretor.
Lean chega a seu auge a partir dos três épicos seguintes que marcaram não apenas sua filmografia, mas a história do cinema. A Ponte do Rio Kwai (1957) rendeu a Lean seu primeiro Oscar de direção e um sucesso inimaginável de espectadores e crítica, que logo exaltou o drama de guerra como a obra-prima do diretor. Mal esperavam que sua epopeia cinematográfica cinco anos mais tarde seria Lawrence da Arábia (1962), drama biográfico baseado nas memórias de T.E. Lawrence que venceu sete Oscars, entre eles os de Melhor Filme e, mais uma vez, de Melhor Direção. Mais três anos se passam e Lean consegue superar o êxito comercial e manter a média impressionante da duração de suas obras precedentes. Com quase quatro horas, Doutor Jivago (1965) transcendeu as telas e até ditou a moda da época em que foi lançado, num recorte crucial da história russa transmutado num romance épico.
Depois de dirigir algumas sequências de A Maior História de Todos os Tempos (1965) para George Stevens, David Lean se posicionava como um dos mais consagrados realizadores de todos os tempos. Esse título, infelizmente, se deturpou ao lançamento de seu filme subsequente, o drama A Filha de Ryan(1970), baseado livremente no clássico Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Extremamente magoado com as duras críticas que recebeu e milionário a partir dos lucros obtidos com Doutor Jivago, Lean não fez qualquer outro filme por 14 anos – período em que se envolveu com algumas produções e outros projetos interrompidos e nunca concluídos.
O último crédito de direção de David Lean foi sua redenção: Passagem Para a Índia (1984) atingiu grandes avaliações e foi amplamente aceito por seu público, que reconhecia o estilo grandioso das produções do cineasta e sua delicadeza para tratar de temas universais. No mesmo ano, além de novas indicações ao Oscar e outros prêmios, foi laureado como Cavaleiro pela realeza britânica, o que garantiu o título de Sir ao seu nome. Enquanto preparava uma ousada adaptação para Nostromo, obra de Joseph Conrad, o diretor faleceu, no dia 16 de abril de 1991, por complicações geradas a partir de uma pneumonia. Sua obra, no entanto, permanece irretocável e possivelmente imortal.
Filme imprescindível: Lawrence da Arábia (1962);
Primeiro filme: Nosso Barco, Nossa Alma (1942), porém o cineasta já foi apontado como um dos diretores de Major Barbara (1941), comédia baseada na peça de George Bernard Shaw pela qual Lean apenas recebeu créditos de editor;
Último filme: Passagem Para a Índia (1984);
Guilty pleasure: Quando o Coração Floresce (1955), drama romântico protagonizado por Katharine Hepburn e ambientado em meio as belíssimas paisagens de Veneza, na Itália;
Filme Perdido: Nostromo, adaptação da obra de Joseph Conrad, encerrada prematuramente por causa da morte do diretor;
Prestígio: David Lean possui uma filmografia que se estende ao longo de 40 anos, período em que o cineasta sempre foi indicado como um dos grandes autores do cinema norte-americano. Ainda assim, ele dirigiu apenas 16 longas-metragens.
Oscar: Venceu duas vezes como Melhor Diretor por aquelas que são apontadas como suas maiores obras: A Ponte do Rio Kwai (1957) e Lawrence da Arábia. Lean tem outras nove indicações ao Prêmio da Academia nas categorias de direção, roteiro e edição.
Frase inesquecível: “Até onde sei, dirigir é uma forma de se apaixonar. Eu amo fazer filmes. Se eu não fosse pago para isso, eu certamente pagaria para fazê-lo.”