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In Memoriam :: Dercy Gonçalves (1907-2008)

Publicado por
Marcelo Müller

Para muitos, Dercy Gonçalves era apenas uma figura folclórica, tanto pelo habitual escracho quanto pela longevidade. Nascida Dolores Gonçalves Costa, em 23 de junho de 1907 (data oficial, contestada algumas vezes), na pequena Santa Maria Madalena, no interior do Rio de Janeiro, ela teve uma infância difícil até ingressar na carreira artística que a fez de fato notória. Filha de uma lavadeira e de um alfaiate, conviveu desde cedo com o abandono, pois sua mãe largou a família após descobrir a infidelidade do marido. Não tardou, porém, a mostrar seus dotes artísticos, em princípio no coral da igreja e em festas da paróquia. Depois de experiências como bilheteira de cinema e em apresentações ocasionais a hóspedes do hotel local, ela fugiu de casa aos 16 anos com Eugenio Paschoal, cantor da Companhia Maria Castro, então de passagem pela cidade.

Estreou nos palcos em 1929, ao lado de Eugenio, em Leopoldina, Minas Gerais. Após uma temporada de apresentações pelo interior, já na década de 30, o casal buscou firmar-se em São Paulo, encontrando dificuldades, sendo a maior delas a tuberculose de Paschoal, fator determinante para que eles regressassem ao Rio de Janeiro, onde viveram até a separação. Posteriormente, em meio à excursão do espetáculo Minha Terra, Dercy descobriu também a tuberculose, internando-se num sanatório da cidade de Santos Dumont, em Minas Gerais. Lá, conheceu Ademar Martins, homem com quem teve um caso, e sua única filha, Decimar. Curada, voltou ao Rio, onde atuou em peças como Rumo a Berlim, de Freire Jr. e Walter Pinto; Passo de Ganso, de Freire Jr., em 1942; Rei Momo na Guerra, de Freire Jr. e Assis Valente, 1943; Momo na Fila, de Geysa Bôscoli e Luiz Peixoto, 1944; e Canta Brasil, de Luiz Peixoto, Geysa Bôscoli e Paulo Orlando, 1945.

Sua estreia no cinema ocorreu em 1943, no filme Samba em Berlim, de Luiz de Barros. Participou de grandes sucessos de bilheteria da época, como Depois eu Conto (1956), de José Carlos Burle, Absolutamente Certo (1957), de Anselmo Duarte, e Uma Certa Lucrécia (1957), de Fernando de Barros, além de estrelar adaptações de peças teatrais, tais como Cala a Boca, Etelvina (1958) e Minervina Vem Aí (1959), ambos de Eurides Ramos. Em 1958, Dercy interpretou aquele que considerava seu melhor papel no cinema, o da protagonista de A Grande Vedete, de Watson Macedo, numa das raras vezes em que se dedicou ao drama, ainda que não abdicado da irreverência de sempre. Ao todo, ela fez 36 longas (algumas fontes falam em 32 e outras em 28).

Já sua história televisiva começou em 1957, na TV Tupi. Mas foi apenas em 1961, já na também extinta TV Excelsior, que ela alcançou o sucesso, no programa Viva o Vovô Deville, de Sérgio Porto. Ainda nos anos 60, passou pela TV Rio, até chegar à TV Globo, emissora na qual ganhou um programa próprio, o Dercy de Verdade, show de variedades, utilidade pública e entrevistas, que chegou a marcar impressionantes 70% de audiência nos domingos. Paralelo à carreira televisiva, Dercy investiu no formato teatral que utilizava sua comicidade típica num diálogo aberto com o espectador. Claro, os shows eram repletos de palavrões e linguagem coloquial, tanto que, certa vez, o crítico Sábato Magaldi observou que, nos espetáculos da atriz o palavrão aplaudido tinha função semelhante à ária da ópera.

Ainda na televisão, Dercy fez algumas novelas, sendo Que Rei Sou Eu? (Rede Globo, 1989) e Deus Nos Acuda (Rede Globo, 1992) as de maior destaque. Colecionou, ainda, inúmeras participações especiais em diversos programas, além de shows televisivos próprios, como o Fala Dercy (SBT, 2008). Em 1991, foi tema do desfile da escola de samba carioca Unidos do Viradouro. Embalada pelo ritmo do samba-enredo “Bravíssimo! Dercy Gonçalves o retrato de um povo”, a homenageada fez questão de desfilar com os seios de fora, aos 84 anos. 

O individualismo sempre foi uma marca de Dercy, artista que depois do grande tempo dedicado aos personagens, tornou-se ela própria um. O humor com o qual pronunciava palavrões, um atrás do outro, era parte indissociável de uma persona confundida com ela própria. Dercy Gonçalves faleceu no dia 19 de Julho de 2008, aos 101 anos de idade, em virtude de complicações respiratórias.

Filme imprescindível: A Grande Vedete (1958)
Filme esquecível: Oceano Atlantis (1993)
Maior sucesso de bilheteria: Os dados da época da chanchada são imprecisos, o que impossibilita a informação concreta da maior bilheteria de Dercy nos cinemas, mas certamente estão entre elas A Grande Vedete (1958) e Cala a Boca, Etelvina (1959)
Primeiro filme: Samba em Berlim (1943)
Último filme: Nossa Vida Não Cabe Num Opala (2008)
Guilty pleasure: A novela Deus nos Acuda (1992)
Papel perdido: Nem no cinema, nem na tevê. Ela perdeu papel no rádio, quando ainda tentava carreira como cantora. Fez teste para a Rádio Nacional, mas não conseguiu passar. Quis o destino que esse teste, atrelado a tuberculose, fizessem com que Dercy desistisse da música e embarcasse de cabeça no teatro.
Oscar: Não, mas recebeu, em 1985, o Troféu Mambembe, numa categoria criada especificamente para homenageá-la: Melhor Personagem de Teatro.
Frase inesquecível: “Quem me criou foi o tempo, foi o ar. Ninguém me criou. Aprendi como as galinhas, ciscando, o que não me fazia sofrer eu achava bom”.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.