O nome Renoir deve causar impressões díspares entre um cinéfilo e um apreciador de pinturas impressionistas, porém a representatividade deste nome para ambas as artes é a mesma, singular e inigualável. Auguste Renoir está para as artes plásticas como seu filho, o cineasta francês Jean Renoir, está para o cinema. Ainda que parecesse destinado a viver à sombra do pai, pode-se dizer que Jean e sua obra estarão eternamente iluminados por ele.
Nascido em 1894 como o segundo filho do artista plástico e de sua jovem esposa Aline Victorine Charigot, Jean ilustrava a obra do pai enquanto desfrutava de uma infância no campo em Essoyes, região central francesa, onde desenvolveu uma grande paixão pela natureza que se tornaria constante em sua filmografia. Com um círculo familiar essencialmente artístico, ele e seus irmãos não tiveram quaisquer outras influências para suas profissões – Pierre e Claude Renoir eram ator e ceramista, respectivamente. Interrompeu suas aspirações pessoais para servir o exército aos 18 anos como piloto e oficial da cavalaria, o que o direcionou para a Primeira Guerra Mundial e a uma séria lesão na perna, que o acompanharia por toda a vida.
Quando deixou o serviço militar, Jean Renoir trabalhou como ceramista, porém sua fascinação pelo cinema, em especial por D.W. Griffiths e Charlie Chaplin, falava mais alto. Depois do casamento com uma jovem ex-modelo de seu pai, Andree Heuchling, e o nascimento de seu filho, Alain, ele desejava projetar a si e a sua esposa ao universo do cinema, o que atingiu com seu primeiro trabalho como diretor no filme La Fille De L’Eau (1924) e repetiu nas obras Nana (1926) – adaptação de uma obra de Emile Zola – e A Pequena Vendedora de Fósforos (1928).
Influenciado por Erich von Stroheim e o expressionismo alemão, o cineasta adentrou os anos 1930 comovido pelas lutas políticas e de classes sociais, equações que repercutiriam em seus próximos filmes. Depois da aclamação por A Cadela (1931) e de levar o clássico literário Madame Bovary (1934) para os cinemas, com Toni (1934) o realizador se valeu da arte para questionar os problemas sociais que o incomodavam a partir de um retrato realista da pobreza e desesperança – marcas que se tornariam constantes em sua obra.
Em 1935, Jean Renoir iniciou a produção de O Crime de Monsieur Lange (1936) e propagou a partir de sua obra uma mensagem de otimismo pela Frente Popular, coligação de partidos de esquerda que direcionaram o cineasta para dirigir uma peça publicitária para o Partido Comunista Francês. O engajamento político e social o levou para a consagração internacional com uma de suas maiores obras, A Grande Ilusão (1937), drama abertamente contra a guerra que despertou a ira de Joseph Goebbels, ministro da propaganda alemã nazista, que chamou o cineasta de “Inimigo Número Um do Cinema”. Na produção, Jean Gabin e Pierre Fresnay interpretam soldados franceses presos durante a Primeira Guerra Mundial em um campo de concentração alemão – e o filme conta com uma das mais emblemáticas atuações de Erich von Stroheim, então amigo e colaborador de Renoir, como o Capitão von Rauffenstein.
A represália de Goebbels fez com que o A Grande Ilusão fosse banido dos cinemas alemães e suas cópias em negativo fossem queimadas, porém tal censura entusiasmou Jean Renoir, que apenas dois anos mais tarde apresentava sua obra máxima e ainda mais polêmica: A Regra do Jogo (1939). Sua crítica ferrenha a corrupção da sociedade francesa camuflada de comédia de costumes tem uma tumultuosa história: depois de cortes contrários à vontade do diretor, por conta da violenta resposta durante a sessão de lançamento do filme, os negativos originais da produção foram destruídos em meio a Segunda Guerra Mundial – e recuperados apenas em 1959. Renoir, que aparecia no filme como um dos personagens centrais, nunca se recuperaria da reação contrária para A Regra do Jogo – que levaria muitos anos para ser considerada a obra-prima do cineasta.
Em 1940, para escapar do governo fascista Italiano, onde desenvolvia um projeto, Renoir percorreu uma série de países até ser recebido nos Estados Unidos e se inserir em Hollywood. Sujeito ao sistema dos estúdios e oprimido por conta de sua genialidade por produtores autocratas, como tantos cineastas europeus, o diretor não conseguiu se estabilizar como um cineasta com o controle de sua obra, e seus trabalhos norte-americanos hoje parecem pequenos quando avaliados em conjunto à sua filmografia. Ao deixar os Estados Unidos, eternizou uma máxima que ainda possui sentido na contemporaneidade: “Hollywood é uma imensa máquina, um admirável mecanismo sem alma”.
Ainda sentindo-se expatriado, Renoir produziu na Índia uma obra que merece ser redescoberta: Rio Sagrado (1951), seu primeiro filme em cores que inspirou Satyajit Ray a se tornar um cineasta. De volta a Europa, dirigiu A Carroça de Ouro (1952) na Itália e French Cancan (1954) e o divertido Estranhas Coisas de Paris (1956) na França, este último com Ingrid Bergman. Parecendo cada vez mais desiludido com o cinema, sem conseguir financiamento para seus filmes e sofrendo com seu estado de saúde, alternou algumas pequenas e espaçadas obras cinematográficas com uma interessante produção literária, onde destaca-se uma biografia sobre seu pai, escrita em 1962, e sua própria autobiografia, publicada em 1974. Nela, demonstrava profunda gratidão para Gabrielle Renard, prima que viveu com a família Renoir durante a infância do cineasta, o introduziu ao melodrama e o ensinou a detestar o clichê. Ele terminaria seu livro com uma frase emblemática: “Espere por mim, Gabrielle”.
Em 1975, uma retrospectiva de seu trabalho no National Film Theatre, em Londres, colocou a obra do cineasta novamente em evidência. No mesmo ano, ele foi premiado com um Oscar honorário e passou a receber cada vez mais atenção por parte de cinéfilos, algo que era amplificado por declarações como a de François Truffaut, que confessou que o cineasta abriu as portas para o nascimento da nouvelle vague francesa.
Em 12 de fevereiro de 1979, Jean Renoir faleceu pacificamente em sua propriedade na Califórnia, onde passou seus últimos anos de vida. Foi sepultado ao lado da família em Essoyes, e ainda hoje é lembrado como um homem de grande espírito, entusiasmo e criatividade ímpares.
Filme imprescindível: A Regra do Jogo (1939);
Primeiros filmes: Une Vie Sans Joie (1924), co-dirigido em parceria com Albert Dieudonné, e La Fille de L’Eau (1925);
Últimos filmes: Le Petit Théâtre de Jean Renoir (1970), filme realizado para televisão que apresenta quatro histórias dirigidas pelo cineasta, e Um Tournage à la Campagne (1994), documentário montado por Alain Fleischer a partir de material de arquivo de Renoir, captado nos bastidores da gravação do média-metragem Um Dia no Campo (1936);
Guilty pleasure: Estranhas Coisas de Paris (1956), com Ingrid Bergman;
Cinebiografia: um período importante da vida de Jean Renoir – e de seu pai, Pierre-Auguste Renoir – foi retratado brilhantemente no recente Renoir (2012), drama de Gilles Bourdos indicado ao prêmio Un Certain Regard, no Festival de Cannes;
Oscar: Foi indicado na categoria de Melhor Diretor pela obra Amor à Terra (1945), prêmio que foi concedido para Billy Wilder por Farrapo Humano (1945). Em 1975 a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas concedeu um Oscar honorário ao diretor, que não esteve presente na cerimônia e teve seu prêmio recebido por Ingrid Bergman em seu lugar;
Frase inesquecível: “Um diretor realiza apenas um filme em sua vida. Então ele o quebra em pedaços e o faz novamente.”
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