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Atualmente, a palavra “ícone” está desgastada por sua utilização frequentemente leviana. Bastou alguém falar algo relativamente pertinente num programa de televisão qualquer para ser alcunhado de tal maneira. Pior, porque às vezes nem isso. Já o ator/diretor/produtor Kirk Douglas, que morreu no dia 05 de fevereiro de 2020 – de causas naturais –, aos 103 anos, vem de um tempo em que ícones eram apenas aqueles cujas contribuições extrapolavam o ordinário. Ele, sim, poderia se intitular dessa forma, pois foi um dos nomes maiúsculos da Era de Ouro de Hollywood, ajudou a consolidar uma hegemonia mundial e a galvanizar o cinema estadunidense como o mais poderoso do mundo, econômica e culturalmente falando. Sua partida é algo a ser lamentado duplamente. Primeiro, porque se vai um artista de carreira sem igual, um sujeito que imortalizou personagens com semelhante intensidade a da sua luta por causas humanitárias, contra listas negras e toda sorte de instrumentos de exclusão. Segundo, porque seu passamento representa a esvaecimento de uma Hollywood, a despeito das podridões, povoada de gente de cinema, uma máquina de sonhos projetados, em ambiente escuro e compartilhado, repleta de enamorados.

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Kirk nasceu num bairro pobre de Nova Iorque e foi batizado Issur Danielovitch Demsky. Seus pais eram judeus originários do então Império Russo, especificamente de uma região atualmente pertencente ao território da Bielorússia. Assim como o filho famoso, que passou a se chamar legalmente Kirk antes de ingressar na Marinha dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, uma vez no solo norte-americano, eles adotaram oficialmente novos nomes. Byrna virou Bertha e Herschel começou a ser chamado de Harry. Todavia, no seio doméstico a família continuava a se comunicar em ídiche, mantendo um apreço cotidiano por suas origens e tradições. O pai vendia trapos – daí vem do título de uma das biografias de Kirk, lançadas em vida, O Filho do Trapeiro. Para a surpresa daquela comunidade, o patriarca abandonou os seus quando Issur era pequeno, o que o fez crescer cercado de mulheres, afinal de contas, além da mãe, tinha seis irmãs mais velhas. Estima-se que ele trabalhou em cerca de 40 empregos na adolescência, isso até ingressar na Universidade de Saint Lawrence, onde se formou em Letras.

Ainda na Universidade de Saint Lawrence, Kirk Douglas fez parte da liga local de boxe, experiência que levaria para alguns filmes. Antes de ser recrutado à Segunda Guerra Mundial, evento global do qual retornou com vários ferimentos de guerra, ingressou na Academia Americana de Artes Dramáticas, demonstrando vontade preponderante de se especializar no mundo artístico. O debute nos palcos aconteceu graças ao apoio da também jovem atriz Lauren Bacall, que, adiante, lhe foi novamente madrinha quanto à elogiada estreia nos cinemas. Seu primeiro filme foi O Tempo Não Apaga (1946), de Lewis Milestone, no qual contracenou com a não menos “enorme” Barbara Stanwyck, interpretando um proeminente, porém alcoólatra, advogado. O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original, ganhando muita projeção. Incensado pela crítica e pelo público, ele não demoraria a receber outros convites para estrelar longas-metragens, começando a pavimentar uma carreira que incluiu quase 100 títulos, entre os que ele atuou, produziu e/ou dirigiu. Nascia uma verdadeira lenda, um astro de estatura inigualável.

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Com Barbara Stanwyck em “O Tempo Não Apaga”

Kirk tinha como marca registrada o furinho no queixo, característica que começou a ser explorada pelos departamentos de marketing dos estúdios, que o entendiam como forte candidato a figurar no panteão de Hollywood. Um ano após sua estreia, em meio a trabalhos feitos em sequência, protagonizou o pouco lembrado Estranha Fascinação (1947), contracenando pela primeira vez com Burt Lancaster, colaborador contumaz na sua jornada artística de mais de 70 anos, com o qual trabalhou em outras seis oportunidades. Sobre seu bom amigo, disse certa vez: “Finalmente me afastei de Burt Lancaster. Minha sorte mudou para melhor. Agora tenho garotas bonitas em meus filmes”. Nesse momento, Kirk era casado com Diana Dill, com quem contraiu matrimônio em 1943, ou seja, antes de lançar-se ao cinema, e de quem se separou em 1951, portanto, quando já era um ator em plena ascensão. São frutos dessa união o também ator Michael Douglas e o produtor Joel Douglas. Em maio de 1954, se casou pela segunda vez, com Anne Buydens, com quem permaneceu até o fim da vida e teve mais dois filhos, o produtor Peter Vincent Douglas e o ator Eric Douglas – este morto em 2004 em virtude de uma overdose de drogas.

A primeira (das três) indicações ao Oscar de Kirk Douglas como ator (sempre nos papeis principais) veio em 1950. No ano anterior, em O Invencível, ele se destacou vivendo um pugilista indigno de confiança. Logo adiante, outra nominação ao prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, pelo protagonista de Assim Estava Escrito (1952), frequentemente considerado um dos maiores (senão o maior) filmes debruçados sobre os peculiares bastidores de Hollywood. Na mesma década, sua terceira indicação, pelo papel de Vincent Van Gogh em Sede de Viver (1956). Por uma dessas injustiças históricas, não ganhou nenhuma das disputas, colocando a mão na cobiçada estatueta dourada apenas em 1996, quando a Academia rendeu-se à sua trajetória e ofereceu-lhe um Oscar honorário por “50 anos de modelo moral e criativo para a comunidade cinematográfica”. Ainda na década de 50, encarnou com brilhantismo o jornalista sem ética em A Montanha dos Sete Abutres (1951), tido enquanto um de seus desempenhos mais marcantes, que colocou por terra qualquer dúvida acerca de seu imenso talento como ator.

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Em “A Montanha dos Sete Abutres”

Nesse turbilhão de fama crescente, viveu ainda dois personagens icônicos, saídos diretamente da literatura: Ulisses, no filme homônimo, lançado em 1954, adaptado da obra de Homero, e o marinheiro Ned Land, de 20.000 Léguas Submarinas, do mesmo ano, superprodução da Disney baseada no livro de Júlio Verne. Em 1955, quando ostentava o poder que apenas os grandes do showbiz exercem, e buscando alcançar mais autonomia para os projetos que lhe calavam ao âmago artístico, ele abriu sua própria produtora, a Byrna Productions (batizada em homenagem à mãe), passo importante para lhe garantir outros trabalhos pelos quais ficou imortalizado. Um deles é o do Coronel Dax, de Glória Feita de Sangue (1957), filme ambientado na Primeira Guerra Mundial, dirigido por um jovem bastante promissor chamado Stanley Kubrick. Logo depois foi a vez de encarar, como produtor e protagonista, uma empreitada enorme, sem precedentes, a versão cinematográfica do livro Spartacus: O Gladiador, de Ben Kane. Originalmente, Anthony Mann, um dos pioneiros da Nova Hollywood, foi contratado para dirigir o longa, mas acabou demitido por Kirk, então produtor executivo, por diferenças criativas. Stanley Kubrick o substituiu.

Mas, no que tange à Spartacus (1960), filme de números grandiloquentes, que custou na época proibitivos US$ 12 milhões, o ponto mais importante – para além das qualidades da trama e do sucesso na temporada de prêmios, pois foi indicado a seis Oscar, ganhando quatro – é a briga particular e hercúlea de Kirk Douglas contra a Lista Negra do chamado Macarthismo, termo utilizado para designar a perseguição a grupos ou a profissionais suspeitos de atividades comunistas, logo impedidos de trabalhar. O nosso homenageado, imbuído do poder que lhe era investido pelo acúmulo de sucessos – algo que nos Estados Unidos tem uma importância incomensurável –, peitou o sistema e fez questão de contar com o roteirista Dalton Trumbo, naquele momento renomado autor, mas renegado em virtude de seu conhecido posicionamento político. A insistência de Kirk quanto ao crédito a Trumbo, a recusa veemente a deixar o amigo assinar com um pseudônimo, foi determinante para que a Lista Negra começasse a perder importância e vários profissionais tivessem restituídos seus direitos ao trabalho. Em 2015, quando lançado o filme Trumbo: Lista Negra (2015), no qual é interpretado por Dan O’Gorman, Kirk falou desses anos sombrios:

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Em “Spartacus”

“Fui ameaçado por contratar um roteirista da lista negra em Spartacus, meu amigo pessoal Dalton Trumbo. Segundo algumas pessoas, Isso me marcaria como ‘amante dos comunistas’ e simplesmente encerraria minha carreira. Mas, sempre pensei que há momentos nos quais é preciso defender seus princípios. Estou tão orgulhoso dos meus colegas atores que usam sua influência pública para se manifestar contra a injustiça. Aos 98 anos, aprendi uma lição da História: ela se repete com muita frequência. Espero que Trumbo: Lista Negra, um belo filme, lembre a todos nós que a Lista Negra foi uma época terrível em nosso país, mas que devemos aprender com ela para que nunca mais aconteça”. E esse posicionamento corajoso também foi refletidos na maior parte dos papeis que Kirk teve diante das câmeras, homens não facilmente atrelados a um idealismo heroico artificial, essencialmente caracterizados por obsessões perturbadoras e/ou desvios de caráter que desnudam incisivamente certas hipocrisias e feiuras da sociedade estadunidense, ou seja, longe de modelos ilibados, bem distantes de mera exemplaridade.

Nos anos 60, quando a hegemonia hollywoodiana era posta em xeque e os filmes não mais dialogavam tanto com uma geração ansiosa por mudanças sociais profundas, Kirk Douglas permaneceu no páreo. Ele se manteve ativo nessa conturbada década que viu os Estados Unidos se render ao cinemanovismo de maneira tardia. Atuou como um vaqueiro rebelde em Sua Última Façanha (1962) e contracenou com outro símbolo da Era de Ouro, John Wayne, em A Primeira Vitória (1965), Sombra de um Gigante (1966) e Gigantes em Luta (1967). Curiosamente, Kirk era um democrata humanista e Wayne um republicano conhecido por ser ferrenho. Além disso, em 1963 estrelou no teatro uma peça adaptada do livro One Flew Over the Cuckoo’s Nest, de Ken Kesley, tentando adiante, em vão, conseguir financiamento para leva-la ao cinema. Os tempos eram outros. Mais tarde, cedeu os direitos adquiridos a seu filho Michael Douglas, que conseguiu produzir finalmente a versão que no Brasil foi chamada de Um Estranho no Ninho (1975), vencedora das cinco principais estatuetas do Oscar (Filme, Direção, Roteiro, Ator e Atriz), um feito e tanto.

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Com John Wayne e Joanna Barnes em “Gigantes em Luta”

Nos anos 70, auge da Nova Hollywood, em meio aos quais existia necessidade de espaço a um novo star system, Kirk Douglas trabalhou em número satisfatório, mas em várias produções menores e filmes para a televisão, além de debutar como realizador. Ele esteve à frente dos faroestes As Aventuras de um Velhaco (1973) e Ambição Acima da Lei (1975). Nos 80, seguiu em produções menos celebradas. O cinema norte-americano criara o conceito de blockbuster e os estúdios estavam verdadeiramente encantados com um tipo de cinema que dialogava com adolescentes e jovens adultos, desde então o público prioritário das grandes e caras produções. Nesse período, Kirk aprofundou sua defesa de causas humanitárias, atuação que o levou a ser condecorado pelos Estados Unidos com a Medalha Presidencial da Liberdade, em 1981, e o Prêmio Jefferson, em 1983. Ao todo, foi indicado a quatro Globos de Ouro (ganhou um), três Emmy, um Bafta. “Quando olho para trás, acho que a decisão sobre Trumbo foi a mais importante da minha carreira”, disse ele no Festival de Berlim, onde recebeu o Urso Honorário, aos 84 anos.

Em 1991, Kirk Douglas ficou bastante ferido após um acidente de helicóptero na Califórnia. Já em 1996, sofreu um derrame que lhe afetou a fala, tornando sua saúde ainda mais vulnerável. Todavia, essas intempéries não diminuíram a voracidade do homem pela arte. Em 2009, aos 92 anos, subiu aos palcos para representar Before I Forget (Antes que eu Me Esqueça, em tradução livre), monólogo com cerca de 90 minutos que ele escreveu sobre a própria vida. Seu último trabalho de destaque nos cinemas foi na comédia Acontece Nas Melhores Famílias (2003), na qual apareceu ao lado do filho Michael Douglas, do neto Cameron Douglas e da ex-esposa Diana (mãe de Michael). O derradeiro filme de sua carreira foi Illusion (2004), no qual interpretou um cineasta afamado que passa sua vida a limpo por sentir a proximidade da morte. Kirk Douglas parecia imortal, alguém que, como uma figura indelével, permaneceria entre nós para garantir a preservação da memória de um cinema diferente, a herança de uma forma de agir baseada em princípios sólidos. Ele se foi, mas seu legado permanece intacto e fortalecido.

Quem anunciou a morte de Kirk Douglas foi Michael, por meio do Instagram: “É com tremenda tristeza que meus irmãos e eu anunciamos que Kirk Douglas nos deixou hoje aos 103 anos. Para o mundo ele era uma lenda, ator da era do ouro do cinema que viveu para além dos próprios anos dourados, humanitário cujo comprometimento com a justiça e as causas em que acreditava criaram um padrão para todos nós. Todavia, para mim e meus irmãos, Joel e Peter, ele era simplesmente nosso pai, para Catherine (Zeta-Jones), um maravilhoso sogro, para netos e bisnetos o avô amoroso, e para a sua mulher, Annie, um marido maravilhoso. A vida de Kirk foi bem vivida. Ele deixa um legado que sobreviverá por gerações e uma história como filantropo reconhecido que trabalhou para ajudar a trazer paz para o planeta. Deixe-me terminar com as palavras que lhe disse no seu último aniversário e que para sempre permanecerão verdadeiras: ‘Pai, eu te amo muito e sou muito feliz de ser seu filho”.

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Cercado de carinho, pelo filho Michael Douglas e a nora Catherine Zeta-Jones

Filmes Imprescindíveis: Assim Estava Escrito (1952), um dos retratos mais contundentes dos bastidores hollywoodianos; A Montanha dos Sete Abutres (1951), talvez a maior interpretação da carreira de Kirk, numa trama que questiona a ética da imprensa; e Spartacus (1960), superprodução bem-sucedida, cujos bastidores são tão vitais quanto o que acontece na telona.

Primeiro Filme: O Tempo Não Apaga (1946), noir bastante elogiado pela crítica, cujo sucesso rapidamente abriu as portas do estrelado para Kirk.

Último Filme: Illusion (2004), no qual, do alto de seus então 88 anos, viveu um cineasta diante de uma crise existencial na fase final de sua vida.

Oscar: Foi indicado em três oportunidades à estatueta de Melhor Ator. O Invencível (1949), Assim Estava Escrito (1952) e Sede de Viver (1956). Ganhou um Oscar honorário em 1996 pelo conjunto de sua carreira.

Frase: “Sempre pensei que há momentos nos quais é preciso defender princípios“.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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