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O anúncio da morte do ator sueco Max von Sydow imediatamente remete à curiosa partida de xadrez entre Antonius Block, o cavaleiro medieval que regressa após as sangrentas Cruzadas, um de seus personagens mais icônicos, e a  Morte personificada. Essa interação, emblemática e sintomática em O Sétimo Selo (1959), mostra um homem desesperado para engambelar a inevitável, aspirando à vida mesmo num entorno caótico como o da Europa tomada pela Peste Negra. No filme, a arte se encarrega de oferecer um raio de luz, de quebrar, vez ou outra, o obscurantismo desse mundo à beira do abismo, no qual religiosos ofertam a própria penitência como tentativa de apelar à misericórdia de um Deus impassível. E Von Sydow parecia o sujeito ideal para, com seu semblante inconfundível, carregar o âmago dessa interlocução entre os sofrimentos pessoais e as dores que afligem a humanidade como todo.

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O Sétimo Selo

Nascido Max Carl Adolf von Sydow, no dia 10 de abril de 1929, em Lund, Skåne, Suécia, ele era filho da baronesa Maria Margareta Rappe, que trabalhava como professora, e de um etnólogo e folclorista da Universidade de Lund, chamado Carl Wilhelm von Sydow. Tinham uma vida confortável, típica da classe média sueca, sem quaisquer privações, mas também destituída de luxos desproporcionais. Pouco se sabe acerca de sua infância, apenas que ele era um filho único e tímido. No ensino médio, na companhia de colegas, entre os quais a futura atriz Yvonne Lombard, fundou um clube de teatro, atividade continuada que incentivou a paixão nascida e nutrida de maneira precoce. Posteriormente, a fim de profissionalizar o que principiou como um amor secundarista, frequentou a Escola Real de Drama (Dramatens elevskola), em Estocolmo, entre os anos 1948 e 1951, convivendo com Lars Ekborg, Margaretha Krook e Ingrid Thulin, esta também futura colaboradora contumaz do cineasta Ingmar Bergman.

Não tardaria para que Max von Sydow debutasse nos cinemas, inundando a telona com seu fenótipo bastante particular – era um homem muito alto, com 1,93 – e um rosto alongado e expressivo que rapidamente caiu nas graças do público. Seu primeiro filme foi Bara em Mor (1949), no qual interpretou o personagem Nils. Logo depois, em 1951, veio Miss Julie, do mesmo cineasta Alf Sjöberg, baseado numa peça de August Strindberg curiosamente encenada adiante por Bergman em algumas ocasiões e levada novamente aos cinemas por sua amiga Liv Ullman em 2014. Nesse período, ainda estudava. Após sua formatura, em 1955, se mudou para Malmo, exatamente onde conheceu Ingmar Bergman, encontro que mudaria definitivamente a trajetória artística de ambos. Aliás, a primeira colaboração entre os dois aconteceu nos palcos, no Teatro Municipal de Malmö. Adiante, fariam história juntos nos cinema, inaugurando essa enorme parceria cinematográfica com O Sétimo Selo, até hoje uma das principais referências quando o assunto é medievalismo na telona. E o trabalho de Von Sydow é absolutamente primoroso.

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O Exorcista

A ligação com Bergman, a mais profícua e marcante de sua carreira, prosseguiu nos anos 1950, e começo dos 1960, com Morangos Silvestres (1957), No Limiar da Vida (1958), O Rosto (1958), A Fonte da Donzela (1960), Através de um Espelho (1961) e Luz de Inverno (1963). Que sequência espetacular, não? Papeis distintos, mas que guardavam a inclinação de Von Sydow pela associação com figuras trágicas, que parecem carregar o mundo nas costas. Já um nome bastante conhecido internacionalmente – principalmente após A Fonte da Donzela levar para a Suécia o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro –, resistiu inicialmente a alguns convites de Hollywood, mas acabou seduzido pela possibilidade de viver Jesus em A Maior História de Todos os Tempos (1965), longa assinado pelo aclamado George Stevens, e que contou com a participação criativa não creditada do igualmente maiúsculo David Lean. Rapidamente, caiu nas graças dos produtores e, junto de sua família, se mudou para Los Angeles, construindo uma trajetória consistente no mercado norte-americano a partir daquele momento definidor que o catapultou ao estrelato.

Em 1967 foi indicado ao Globo de Ouro por seu trabalho em Hawaii (1966), que também o credenciou a concorrer ao prêmio de Melhor Ator no National Society of Film Critics Awards. Mesmo gozando desse prestígio, não se esqueceu do mestre Bergman, com o qual fez em 1968 A Hora do Lobo. Aliás, em várias ocasiões o realizador disse que esse personagem vivido por Von Sydow era um dos mais autobiográficos de sua carreira, o artista assombrado por fantasmas num clima asfixiante de terror que invade a casa dividida com a esposa devotada. Aproveitando o sobrevoo europeu, fez também o intenso Vergonha (1968) e o hipnótico A Paixão de Ana (1969), repetindo a parceria com Bergman e Liv Ullman, com quem contracena em ambos os filmes. Nos anos 70, antes de se mudar para Roma e atuar em alguns filmes italianos, o ator teve um de seus papeis mais lembrados pelo público, o padre Merrin de O Exorcista (1974). Poucos artistas construíram uma carreira tão diversificada e densa como ele.

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Flash Gordon

Já na Itália, Von Sydow se tornou amigo muito próximo de outra lenda, Marcello Mastroianni. Destacou-se como o assassino letal de Três Dias do Condor (1975) e como o capitão Ortiz de O Deserto dos Tártaros (1976). O sueco intercalou, a partir daí, filmes de grandes diretores e/ou com um perfil comercial alternativo e obras consideradas para um grande público. O indefectível imperador Ming de Flash Gordon (1980) e o Frederick de Hannah e Suas Irmãs (1986) têm pouco a ver, a não ser o semblante peculiar desse ator tão versátil quanto marcante. Von Sydow trabalhou com David Lynch no controverso Duna (1984) e emocionou plateias do mundo inteiro em Pelle: O Conquistador (1988), papel que lhe garantiu sua primeira indicação ao Oscar (de Melhor Ator). Nos anos 1990, nos quais também empilhou projetos, sobressaiu ao viver o escritor Knut Hamsun na cinebiografia Humsun (1996).

Já nos anos 2000, Von Sydow se destacou em Minority Report: A Nova Lei (2002), O Escafandro e a Borboleta (2007), Hora do Rush 3 (2007), Ilha do Medo (2010) e entrou nos anos 2010 recebendo sua segunda indicação ao Oscar, desta vez como Melhor Ator Coadjuvante, por Tão Forte e Tão Perto (2011). Além de emprestar sua inconfundível voz para inúmeros projetos nos quais, então, se envolveu como dublador, debutou na saga Star Wars em Star Wars: O Despertar da Força (2015) e, logo depois, entrou para o elenco de Game of Thrones (2011-2019), participando de três episódios da superprodução da HBO. Seu último filme é Echoes of the Past, longa pequeno, dirigido por Nicholas Dimitropoulos, que atualmente está em processo de pós-produção. Desde já o filme adquiriu um significado diferente, pois se trata do testamento de um dos maiores atores que o cinema teve a honra de abrigar. Morreu no dia 08 de março, aos 90 anos, em Paris, cidade na qual atualmente residia essa verdadeira lenda.

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Game of Thrones

Filmes Imprescindíveis: O Sétimo Selo, A Hora do Lobo, A Maior História de Todos os Tempos, A Fonte da Donzela e O Exorcista. 

Primeiro Filme: Bara em Mor (1949)

Último Filme: Echoes of the Past (ainda inédito)

Oscar:  Indicado duas vezes. Melhor Ator, por Pelle: O Conquistador; Melhor Ator Coadjuvante, por Tão Forte e Tão Perto.

Frase: “Quanto mais eu tinha de agir como santo, mas me sentia pecador”.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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