“Morreu Malvadeza Durão”. Assim canta Grande Otelo, interpretando um sambista desconhecido que oferece seus versos à já famosa Ângela Maria em Rio, Zona Norte (1957). O subsequente sorriso do homem, em resposta ao encantamento da célebre artista pela letra, representa o triunfo de um povo humilde, ao qual o cineasta Nelson Pereira dos Santos esteve atento durante sua prolífica e brilhante carreira. Morreu Nelson, esse homem considerado o pai do Cinema Novo, sujeito que abriu as portas, que provocou uma verdadeira revolução na nossa arte tão combalida por toda sorte de contratempos, sensível em tempos enrijecidos. Foi-se, infelizmente, aquele cuja trajetória se alimentou de Graciliano Ramos em duas oportunidades, que dialogou com Nelson Rodrigues, que estabeleceu ponte entre cinema e literatura, artes por ele amadas incondicionalmente. Paulista nascido no Bixiga em 1928, filho do alfaiate Antônio Pereira dos Santos (1897-1970) e da dona de casa Angelina Binari dos Santos (1900-1992), teve contato desde cedo com o cinema, já que seu pai tinha o hábito de leva-lo ao Cine Teatro Colombo, não raro passando tardes inteiras de domingo assistindo aos filmes em cartaz. Plantava-se a semente.
Durante a adolescência, Nelson participa de cineclubes e iniciativas de teatro amador. Em 1947, liga-se ao grupo Os Artistas Amadores, do qual fazem parte os atores Paulo Autran (1922-2007) e Madalena Nicol (1917-1996). Simultaneamente, desperta o seu público interesse pela política. Filia-se ao Partido Comunista Brasileiro, de onde sairia apenas em 1956. Ainda em 47, ingressa na carreira jornalística, sendo revisor do Diário da Noite. O dinheiro é utilizado para ajudar em casa e pagar a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a na época famosa Academia do Largo São Francisco. Mesmo que o estudo na área não tenha o marcado consideravelmente, ficava feliz de frequentar o mesmo espaço acadêmico outrora desfrutado por Castro Alves, um dos escritores que mais o influenciou. Nelson mantém a seara jornalística como atividade mesmo após ingressar no cinema. Atua como redator no Diário Carioca (1956-1958) e no Jornal do Brasil (1958-1969), revelando paixão pelas palavras. Mas, em 1949, empreende uma viagem à França que define os rumos de sua vocação cinematográfica. Frequenta a Cinemateca Francesa, de Henri Langlois, e toma contato com a efervescência cultural pós-guerra em Paris. Foram dois meses imprescindíveis.
Logo ao retornar ao Brasil, realiza seu primeiro filme. Juventude (1950) é um documentário média-metragem em 16mm sobre diversos trabalhadores da cidade de São Paulo, destinado ao Festival da Juventude, encontro de estudantes comunistas na Berlim Oriental. Essa produção teve o negativo perdido, mas, segundo o próprio Nelson, configura um evento vital, pois a partir dela houve a descoberta definitivamente do cinema. Imediatamente após, veio um documentário inacabado, o que encerrou a espécie de prólogo amador de uma carreira que rapidamente se tornaria profissional. Decidido a mergulhar profundamente na experiência cinematográfica, Nelson atua como assistente de direção em Balança, Mas Não Cai (1952), de Paulo Vanderlei, O Saci (1953), de Rodolfo Nanni, e Agulha no Palheiro (1953), de Alex Viany. A partir de 1953, fixa residência no Rio de Janeiro, cidade em que os contrastes sociais gritam cotidianamente, onde Nelson encontra mais correspondência aos seus ideais políticos e artísticos. Bem diferente do cinema realizado em São Paulo, pela Vera Cruz, cuja preocupação com a qualidade era primordial, Nelson quer mostrar na telona as aspirações do povo, suas histórias e a luta de uma gente que pena para viver num país desigual e cheio de contradições.
Nelson estreia como diretor de longas-metragens em 1955, com o assombro Rio, 40 Graus. Dono de uma evidente pegada neorrealista, fruto da fusão das preocupações políticas do realizador com sua veia cinéfila, o filme acompanha a vida de cinco meninos moradores de favelas que tentam sobreviver da venda de amendoim na Cidade Maravilhosa, em pontos turísticos ou de grande movimentação popular. As desventuras dessas crianças negras por uma metrópole em que, a despeito do clima tropical e do liberalismo, são latentes as discriminações de várias naturezas (de classe social, étnica, etc.), são registradas por Nelson em tom documental, com a câmera capturando e ressignificando a realidade. Utilizando equipamentos emprestados, com recursos extremamente modestos, o cineasta cria a pedra fundamental do cinema moderno brasileiro, gerando reações antagônicas, que vão da louvação ao repúdio. O longa-metragem é vetado pela censura, com o carimbo do coronel Geraldo de Menezes Cortes, chefe da Segurança Pública, que, sem assistir, proíbe a produção por ela possuir elementos comunistas, pois informado da filiação de Nelson ao PCB.
Depois, ao ver o filme, o censor radicaliza a reprimenda, condenando a revelação do lado negativo do Rio de Janeiro, os diálogos com gírias e o personagem paródico do deputado. Não poupa sequer o título, dizendo que na capital fluminense nunca a temperatura chegara a 40 graus. Após diversas exibições clandestinas para artistas e celebridades da época, entre os quais os escritores Jorge Amado, Manuel Bandeira e Menotti del Picchia, torna-se questão nacional. O veto apenas cai em dezembro de 1955, na iminência da posse de Juscelino Kubitscheck como presidente da República. A estreia em circuito comercial se dá em março de 1956. O impacto e a relevância de Rio, 40 Graus são incomensuráveis. Embrião do Cinema Novo, ele foi analisado à exaustão, inclusive internacionalmente. Diz-se que o próprio André Bazin, um dos maiores críticos da história, lhe teceu loas. Logo depois, Nelson faz Rio, Zona Norte, flertando com a linguagem do cinema popular, mais especificamente a chanchada, mostrando um compositor humilde na luta pelo reconhecimento da qualidade de sua música. Protagonizada por Grande Otelo, num de seus papeis mais brilhantes, e com participação emblemática de Ângela Maria, a empreitada, contudo, não tem o sucesso esperado.
Após Rio, Zona Norte, Nelson Pereira dos Santos produz O Grande Momento (1958), de Roberto Santos, ampliando sua participação como fomentador de uma geração que transformou o cenário nacional. A inclinação neorrealista foi vista novamente em Vidas Secas (1963), projeto ambicioso de levar o romance icônico de Graciliano Ramos às telonas. Na verdade, Nelson havia tentado fazer o filme antes, mas sua chegada ao sertão nos idos de 1961 coincide com uma temporada insólita de muitas chuvas. Então, decide improvisar Mandacaru Vermelho (1961), para aproveitar o deslocamento da equipe e o dinheiro já levantado, adiando novamente seus planos quando Jece Valadão o contrata para dirigir Boca de Ouro (1963), considerada por muitos como a maior adaptação cinematográfica de uma obra de Nelson Rodrigues. Ao voltar adiante para o sertão, por indicação de Glauber Rocha leva o fotógrafo cearense Luiz Carlos Barreto, então profissional da Revista Cruzeiro. Estreante como diretor de fotografia cinematográfica, Barreto decide prescindir dos filtros e filmar a nu, inovando ao mostrar cruamente a percepção da luz nordestina. O filme, reconhecido como marco, representa o Brasil no Festival de Cannes de 1964, junto com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), de Glauber Rocha. Jean-Luc Godard, ao ser perguntado anos depois, diz que o filme de Glauber era incrível, mas que o de Nelson lhe tinha ficado mais forte na memória.
O golpe militar de 1964 dificulta a carreira de Nelson Pereira dos Santos, bem como a de todos os cineastas já empenhados em propor uma linguagem nova para a produção nacional. Mesmo reconhecido internacionalmente como um nome de extrema relevância, ele roda nos anos 60 obras menores, se comparadas às suas anteriores, no que tange à repercussão na época, tais como El Justicero (1967) e Fome de Amor (1967). Em 1968, participa da criação do curso de cinema da Universidade Federal Fluminense, onde passa a dar aula. Nelson foi professor fundador do curso de cinema da Universidade de Brasília, lecionou na UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) e na Universidade de Columbia, em Nova York. Foi, também, membro do Conselho Superior da Escola de Cinema de Havana. Em 1970, dirige Azyllo Muito Louco, baseado no conto O Alienista, de Machado de Assis, com a utilização de sintomáticas alegorias para falar de um período política e socialmente nefasto do Brasil. Numa chave completamente diferente, a seguir vem Como Era Gostoso o Meu Francês (1972), evocação da antropofagia de Oswald de Andrade, que causa polêmica pela utilização de pessoas nuas, já que baseado nas aventuras de Hans Staden, prisioneiro dos Tupinambás no litoral vicentino do Brasil colônia. Nelson brincava que o sucesso do filme na Europa se devia ao fato das atrizes estarem nuas em cena. De 1970 a 1980 ele se foca no veio popular.
Realiza, na sequência, o premiado O Amuleto de Ogum (1974), enfatizando ritos da umbanda. Tenda Dos Milagres (1975) e Jubiabá (1986), adaptações dos livros homônimas de Jorge Amado, comunista como Nelson, são dramas sociais, filmados na Bahia, focados na miscigenação e na religiosidade locais. Em Na Estrada da Vida (1979), conta as dificuldades vividas pela dupla Milionário & José Rico até o sucesso, com isso acessando um Brasil sertanejo. Da lavra dos anos 80, Memórias do Cárcere (1984), novamente recorrendo a Graciliano Ramos, é sua grande realização. Embora descreva uma prisão do governo Getúlio Vargas, o filme nitidamente faz referência ao regime ditatorial que então agonizava no Brasil, mas ainda vigorava. A obra recebe os prêmios de Melhor Filme da Crítica Internacional no Festival de Cannes e do Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana, ambos concedidos em 1984. Após Jubiabá, passa um bom tempo sem lançar longas, assim como boa parte dos maiores cineastas brasileiros, já que o país vive um verdadeiro desmonte cultural. A partir daí, seus longas possuem repercussão mais modesta. No período da chamada Retomada, dirige A Terceira Margem do Rio (1993), baseado em contos de Guimarães Rosa, além de fazer para a televisão Casa Grande e Senzala (2000), calcado na obra do cientista social Gilberto Freyre.
A última ficção de Nelson Pereira dos Santos para o cinema é Brasília 18% (2006). Protagonizada por Carlos Alberto Riccelli e Malu Mader, fala sobre os bastidores de uma investigação pericial que pode implicar questões de cunho político. A partir dele, o mestre se dedica aos documentários, primeiro, com Português, a Língua do Brasil (2009), e, segundo, debruçando-se duplamente sobre a obra de outro gênio da raça, o maestro Tom Jobim, com A Música Segundo Tom Jobim (2012) e A Luz do Tom (2012). Em 2006, Nelson se torna o primeiro cineasta a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Era dele o lugar de número sete, que pertencera a Sergio Correia da Costa e cujo patrono era Castro Alves. Durante 49 anos, foi casado com a antropóloga Laurita Andrade Sant’Anna dos Santos, que faleceu em junho de 1999. Internado no Hospital Samaritano, na zona sul carioca, para o tratamento de uma pneumonia, Nelson foi diagnosticado com um câncer agressivo no fígado. Ele morreu aos 89 anos, deixando um legado de valor incalculável ao cinema e à arte do Brasil.
Filmes Imprescindíveis: Rio, 40 Graus (1955) e Vidas Secas (1963). Embora seja complicado deixar de fora da categoria outros grandes momentos da filmografia de Nelson, esses dois verdadeiros emblemas da cinematografia brasileira possuem peso histórico e cinematográfico. Primeiro, por representarem, respectivamente, a semente de um movimento vital como o Cinema Novo e sua consolidação, inclusive, internacionalmente; segundo, por, ainda hoje, serem estandartes de uma forma de filmar o Brasil a partir de sua miserabilidade, observando o abismo social para entender as vísceras de um país profundamente desigual.
Filme esquecível: Dentro de uma carreira tão emblemática, há quem indique Cinema de Lágrimas (1995), como sendo um exemplar absolutamente menor. Lançado exatamente quando a produção brasileira começava a reerguer-se de um período letárgico em virtude da falta de subsídios governamentais, ele é parte do projeto das comemorações dos 100 anos do cinema organizado pelo British Film Institute. Na trama, um cineasta vai ao México para estudar os grandes melodramas mexicanos.
Primeiro Filme: Juventude (1945), cujos negativos foram perdidos. Documentário filmado em 16mm, feito para ser apresentado num congresso mundial da juventude comunista em Berlim Oriental. Nelson o considerava produto de sua fase amadora, antes da viagem à França e dos trabalhos como assistente que o prepararam para a estreia em longas, com Rio, 40 Graus.
Último Filme: A Luz do Tom (2012), vencedor do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro na categoria Melhor Documentário e indicado a Melhor Roteiro Adaptado, pois baseado no livro Antonio Carlos Jobim: um Homem Iluminado, de Helena Jobim.
Guilty pleasure: Embora esteja longe de ser um “prazer culposo”, Na Estrada da Vida, no qual Nelson mergulha nas raízes sertanejas do Brasil a partir das experiências da dupla Milionário & José Rico, é aqui incluído para, inclusive, que porventura se motive a redescoberta do mesmo.
Premiações: Festival de Cannes (Vencedor do prêmio OCIC com Vidas Secas, em 1964, e do prêmio da FIPRESCI com Memórias do Cárcere, em 1984); Festival de Brasília (Melhor Filme e Melhor Diretor, por Tenda dos Milagres, em 1977); Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (Melhor Curta-metragem, com Meu Compadre, Zé Ketti, em 2002; Melhor Documentário com A Luz do Tom, em 2012, e Prêmio Honorário em 2009); Festival de Gramado (Melhor Filme em 1975, com O Amuleto de Ogum, e Troféu Oscarito em 1998); Festival de Havana (Melhor Filme com Memórias do Cárcere, em 1984).
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