O ato de fazer cinema não se restringe à realização propriamente dita. Esse “fazer cinema” também está contemplado em outros processos que não necessariamente é o de rodar um filme, tais como o da crítica, o da curadoria, o da pesquisa, enfim, os que envolvem a elaboração de pensamentos, conceitos e critérios da Sétima Arte. Portanto, a atuação de Peter Bogdanovich como um “fazedor de cinema” não pode ser lembrada somente do ponto de vista de sua obra como diretor, mas também levar em consideração a sua ampla, consistente e honorável carreira como um pensador de cinema. Era alguém que elaborava teorias, estimulava fricções e debates, promovia mostras, em suma, um sujeito que viveu para compartilhar o seu amor pela arte audiovisual que foi inaugurada em 1895. Concebido na Europa, Bogdanovich nasceu em Kingston, Nova Iorque, nos Estados Unidos. Seus pais eram fugitivos do nazismo prestes a assolar o mundo, por isso o deslocamento fez dele essencialmente norte-americano. Seu pai, Borislav Bogdanovich (1899-1970), era pintor e pianista sérvio, além de cristão ortodoxo. Sua mãe, Herma Robinson Bogdanovich (1918-1979), era filha de uma família rica de judeus austríacos. Mais adiante, Bogdanovich foi um dos pilares da Nova Hollywood, o movimento cinemanovista que renovou os EUA representados nas telonas e que carregava como um elemento de transformação a noção de que os imigrantes e seus filhos eram pilares desse país.
Não demorou para Peter Bogdanovich se encantar pelas artes. Na metade dos anos 1950, o então jovem obstinado estudava com a lendária professora de interpretação Stella Adler, o que lhe abriu portas ao ainda novo rol da televisão. Nesse universo em ascensão, foi aproveitado em séries de repercussão limitada. Já no início dos anos 1960, quando a Hollywood da Era de Ouro dava sinais evidentes de fadiga – ou seja, era preciso mudar as estruturas de um mastodonte pesado e consolidado demais –, Bogdanovich começou a exercer uma cinefilia tão apaixonada quanto obsessiva. Segundo relatos da época, chegava a assistir a cerca de 400 filmes por ano, numa época em que não existiam opções caseiras (como DVD ou streaming). Suas experiências foram em telas grandes, na companhia de outras pessoas, em salas comerciais ou pequenas mostras. Nesta década que conheceria uma coleção de mudanças sem precedentes na Meca do cinema estadunidense, Peter Bogdanovich teve papel fundamental como curador cinematográfico do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Se encarregou pessoalmente de montar retrospectivas, conseguir cópias diretamente com produtores e cineastas, entre outros contatos que foi preciso estabelecer. E a atuação foi essencial para noções hoje praticamente inquestionáveis, como a valorização do cineasta John Ford.
Em analogia, foi imprescindível a atuação de François Truffaut na época de militância na revista Cahiers du Cinéma para o mundo valorizar Alfred Hitchcock, realizador considerado menor nos Estados Unidos antes que os franceses de uma das publicações mais importantes do cinema o tratassem como gênio. Portanto, se hoje amamos Hitch quase incondicionalmente, devemos um pouco disso a Truffaut e à sua capacidade de ir além do véu das aparências. Aconteceu algo muito parecido com Peter Bogdanovich, incansável pesquisador que lançou luz sobre a genialidade de John Ford, ao ponto de conseguir “provar” que ele era mais do que um prolífico e vulgar executor de faroestes. Bogdanovich escreveu um livro sobre seu grande ídolo, baseado na pesquisa profunda que ele próprio empreendeu quando montava uma retrospectiva de Ford para o MoMa. Bogdanovich também enfatizou as qualidades maiúsculas das obras de Howard Hawks, nisso também se alinhando aos franceses. Destacou como nenhum outro pesquisador pregresso as trajetórias de pioneiros como Allan Dwan, um dos mais respeitados da era muda de Hollywood. Além dos gostos parecidos, outro paralelo que podemos estabelecer entre Bogdanovich e os franceses da Cahiers du Cinéma é justamente o fato de que eles expandiram os seus “fazer cinema”, da reflexão à execução de filmes autorais.
Ainda nos anos 1960, ao lado de sua primeira esposa, Polly Platt, Peter Bogdanovich rumou a Los Angeles com o intuito de debutar na função de realizador (de novo, a exemplo dos colegas franceses). No processo de aclimatação em Hollywood, acabou conhecendo Roger Corman, uma das figuras mais importantes da história do cinema norte-americano. Corman tinha ficado impressionado com alguns artigos de Bogdanovich e o convidou para estrear como diretor, algo prontamente aceito por aquele novado em Los Angeles que tinha construído certa fama em Nova Iorque. E o primeiro filme dessa parceria foi Na Mira da Morte (1968), cuja história trouxe uma mescla de reverência ao cinema e ponderação sobre aquela década conturbada nos Estados Unidos. Nele, um veterano do cinema de horror vivido por Boris Karloff (alô, metalinguagem) se depara com um veterano que voltou com traços de psicose da Guerra do Vietnã. Os ataques à distância com a arma de mira telescópica certamente remetiam ao chocante assassinato de John F. Kennedy, em novembro de 1963. “Fui da lavanderia até a direção do filme em três semanas. Ao todo, trabalhei vinte e duas semanas, passando por pré-produção, filmagem, segunda unidade, corte, dublagem. Nunca havia aprendido tanto até aquele momento”, contou certa vez o agora cineasta sobrea experiência inicial sob o guarda-chuva de Roger Corman, com quem ele também fez adiante Viagem ao Planeta das Mulheres Selvagens (1968), típica produção sci-fi cormaniana, com plantas carnívoras e mulheres telepatas em Vênus.
Mas, Peter Bogdanovich não deixou o jornalismo/pesquisa/curadoria, conciliando suas várias formas de “fazer cinema”. Ainda nos anos 1960, conheceu Orson Welles com quem começou uma amizade – que rendeu um livro sobre Welles, publicado em 1992. Para se ter uma ideia, nos anos 1970, ao ter se tornado um dos principais nomes de Hollywood, Bogdanovich acolheu Welles em sua mansão quando o pai de Cidadão Kane (1942) teve problemas financeiros. O Outro Lado do Vento (2018), obra póstuma de Orson Welles, lançada recentemente pela Netflix, só pode existir (era um emaranhado de cenas filmadas quase esquecidas) por conta da atuação de Peter Bogdanovich como um consultor essencial. Voltando aos anos 1960/1970, antes de comandar o filme que o consagrou, Bogdanovich finalizou o documentário Dirigido por John Ford (1971), encomenda do Americam Film Institute que incluía entrevistas com John Wayne, James Stewart, Henry Fonda, narrado por Orson Welles. O filme ficou anos fora de circulação e foi relançado em 2006 pelo canal norte-americano TCM, com o acréscimo de entrevistas de Clint Eastwood, Walter Hill, Martin Scorsese e Steven Spielberg. No começo dos anos 1970, Peter Bogdanovich ganhava terreno e preparava a sua mais ambiciosa produção até aquele momento: A Última Sessão de Cinema (1971).
Aos 32 anos de idade, Peter Bogdanovich lançou A Última Sessão de Cinema, filme ambientado numa pequena cidade decadente do Texas em que adolescentes cursam o último ano da escola no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Com uma história de amadurecimento que evocava a tradição da Hollywood da Era de Ouro, mescla de atores conhecidos e novatos, o cineasta viu seu nome ser alçado ao panteão dos possíveis gênios de uma nova geração. O longa foi indicado a oito Oscar, incluindo Melhor Filme e Melhor Direção, e ganhou duas: Cloris Leachman e Ben Johnson nas categorias de Melhor Atriz Coadjuvante e Melhor Ator Coadjuvante. No elenco podemos identificar também figuras que teriam carreiras vastas em Hollywood, tais como Ellen Burstyn, Randy Quaid e Jeff Bridges. A atenção da imprensa pelo filme ganhou outras camadas e proporções quando veio à tona a paixão avassaladora de Peter Bogdanovich pela jovem Cybill Shepherd, uma das atrizes principais da produção. Esse envolvimento rendeu o divórcio de Bogdanovich com Polly Platt, colaboradora de longa data e mãe de seus dois filhos. Os bastidores do escândalo foram um prato cheio para os tabloides e a ala mais sensacionalista da imprensa de Hollywood – que sempre amou uma fofoca, especialmente as relacionadas a bombásticos casos extraconjugais.
Controvérsias à parte, com A Última Sessão de Cinema Peter Bogdanovich se transformou numa das meninas dos olhos da Nova Hollywood, conjugando a renovação e a reverência. Algo reafirmado em seguida, com o também bem-sucedido Essa Pequena é uma Parada (1972), estrelando Barbra Streisand e Ryan O’Neal. É uma homenagem às screwball comedy, as chamadas “comédias malucas”, especialmente as que seu ídolo Howard Hawks dirigiu nos tempos que precederam a revolução hollywoodiana incendiada pela contracultura. Foi nessa época que Bogdanovich se juntou a seus contemporâneos Francis Ford Coppola e William Friedkin para formar o grupo chamado The Directors Company, com o qual a Paramount firmou contrato de produção que previa carta branca desde que os cineastas não estourassem os orçamentos pré-estabelecidos. Foi nesse esquema que ele fez Lua de Papel (1973), comédia ambientada na época da Grande Depressão estadunidense. O filme rendeu a Tatum O’Neal o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante quando ela tinha dez anos de idade – então, a mais jovem a receber a estatueta numa categoria de interpretação. Até aí, Bogdanovich colecionava ótimos desempenhos de público e boas críticas. Mas, a partir de Daisy Miller (1974), fracasso de bilheteria e mal recebido por especialistas, começou o que muitos consideram a sua derrocada de realizador. E essa trajetória um tanto errática seguiu o declínio da Nova Hollywood.
Nos anos 1980, uma tragédia marcou a vida de Peter Bogdanovich. Nas filmagens de Muito Riso e Muita Alegria (1981), ele novamente se apaixonou por uma de suas estrelas. Neste caso, Dorothy Stratten, então casada com o empresário Paul Snider. Ao comunicar ao marido que o estava deixando para ficar com o cineasta, Dorothy foi assassinada por Paul (e ele cometeu suicídio em seguida). A publicidade negativa influenciou a distribuição de Muito Riso e Muita Alegria, complicando a carreira de Bogdanovich, atravessada por um drama pessoal enorme. O fato desencadeou outras coisas que fizeram Bogdanovich perder milhões de dólares e decretar falência. Com sua reputação de cineasta em crise, ele voltou à escrita, começando pelas memórias de Dorothy Stratten, The Killing of the Unicorn: Dorothy Stratten (1960-1980), livro publicado em 1984. Regressando esporadicamente à função de cineasta, ele alternou sucessos moderados, como o de Marcas do Destino (1985), e o fiasco Texasville (1990), uma não muito bem apreciada sequência de A Última Sessão de Cinema. Nos anos 1990, continuou comandando projetos de gosto duvidoso e nos 2000 teve mais destaque como ator, principalmente ao viver o psicanalista da psicanalista de Tony Soprano na série Família Soprano (1999). Voltou a algo aparentemente mais autoral somente em 2014, com o simpático e leve Um Amor a Cada Esquina, filme estrelado por Imogen Poots, Owen Wilson e Jennifer Aniston.
Entre os inúmeros resultados de sua produção intelectual, se destaca o livro Afinal, Quem Faz os Filmes?, editado no Brasil pela Companhia das Letras, no começo dos anos 2000. Nele, Bogdanovich compila brilhantemente as entrevistas reveladoras que teve com diversos nomes maiúsculos da história do cinema norte-americano, tais como os pioneiros Allan Dwan e Raoul Walsh; os célebres europeus Fritz Lang, Josef von Sternberg e Alfred Hitchcock; os inventivos comandantes de filmes B Edgar Ulmer e Joseph Lewis; os clássicos Howard Hawks e George Cukor; os mestres da comédia Leo McCarey e Frank Tashlin; e até um gênio do desenho animado como Chuck Jones. Se trata de uma obra essencial para quem quiser conhecer esses estilos tão diferentes que ajudaram a moldar boa parte do que entendemos como a Era de Ouro de Hollywood. Além desse êxito, muitos rumores rondaram a conturbada vida pessoal de Bogdanovich. Depois de se casar com Louise Stratten, 29 anos mais jovem e irmã de sua falecida amante Dorothy Stratten, circularam boatos de que ele se comportava como o personagem de James Stewart em Um Corpo que Cai (1958), ou seja, tentando fazer que sua esposa ao longo de 13 anos ficasse parecida com a sua falecida irmã. O divórcio entre Peter e Louise aconteceu em 2001. Porém, tantos consideram que a derrocada profissional começou com a separação de Polly Platt, a colaboradora nos primeiros e mais elogiados trabalhos. Peter Bogdanovich morreu de causas naturais, em sua casa na cidade de Los Angeles. Foi alguém que “fez cinema” de várias maneiras.
Filme imprescindível: A Última Sessão de Cinema (1971), uma das preciosidades da chamada Nova Hollywood, a onda de transformação propagada por um novo cenário sócio-político nos Estados Unidos, sobretudo entre a segunda metade dos anos 1960 e o começo dos anos 1980.
Filme esquecível: Texasville (1990), daquele tipo de sequência que parecia inevitavelmente fadada ao fracasso. E os prognósticos estavam corretos. Tanto que tem muita gente desconhece completamente o fato de que A Última Sessão de Cinema tenha uma continuação.
Primeiro filme: Na Mira da Morte (1968), filme produzido pela lenda Roger Corman e que já anunciava algo célebre no cinema do diretor: a nostalgia mesclada com elementos dos tempos atuais.
Último filme: The Great Buster (2018), documentário sobre Buster Keaton.
Guilty pleasure: Marcas do Destino (1985), drama biográfico estrelado por Eric Stoltz, Cher e Sam Elliott, que arrecadou quase US$ 50 milhões tendo custado algo próximo a US$ 8 milhões. O tipo de história naturalmente triste, cujo drama é equilibrado pela sensibilidade do cineasta.
Direção perdida: se recusou, assim como vários de seus colegas, a dirigir O Poderoso Chefão, longa-metragem baseado num livro de Mario Puzzo.
Oscar: Indicado a Melhor Direção e Melhor Roteiro Adaptado por A Última Sessão de Cinema.
Frase inesquecível: “Sempre pensei que o objetivo do cinema era acabar com a descrença”.