Uma das maiores bilheterias de todos os tempos do cinema francês e candidato do país ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, Intocáveis é alvo de elogios de crítica e público desde sua estreia. O longa conta a história de um milionário tetraplégico que, eventualmente, contrata um ex-presidiário senegalês como ajudante/enfermeiro. Dirigido e escrito pela dupla Olivier Nakache e Eric Toledano (parceiros desde 1995), o filme tem sido elogiado por sua simplicidade, sua história tocante e a bela lição de vida trazida pela trama.
Mas há mais em Intocáveis do que apenas uma bela história. Quando se leva em conta que direção e decupagem dão ao filme um caráter naturalista, bem “americanão”, com direito a sequências de montagem embaladas por música para indicar passagem de tempo, atuações cativantes e roteiro nos moldes clássicos, pode-se concluir que, em termos de linguagem, não há no longa nenhuma novidade ou peripécia digna de nota. Isso talvez explique inclusive seu sucesso entre plateias educadas por blockbusters – e muitas devem ver nele, ecos de Sempre amigos (The Mighty, 1998), por exemplo. Mas o trunfo do longa está no que se pode – “pode”, não que seja necessário – ler nas entrelinhas. É em sua dimensão metafórica que Intocáveis se diferencia de qualquer outro feel good movie e se torna algo maior, sobre o qual vale a pena pensar.
Por exemplo, Philippe, amavelmente interpretado por François Cluzet, não é apenas um ricaço. É um homem que, além de posses, possui um conhecimento refinado e erudito sobre artes plásticas, música e boas maneiras. Um aristocrata, por excelência, ainda que de bom coração. Uma situação que, não por acaso, é a da França: um país rico e reconhecido por sua cultura refinada, lugar onde o absolutismo monárquico atingiu expoentes absurdos – refletidos aqui e ali numa cenografia que parece prezar o rococó e transformar a mansão de Philippe em Versalhes – e que, mesmo após uma revolução, ainda preserva em sua personalidade traços de nobreza e fidalguia. A mesma França que, hoje, está no olho do furacão da crise do Euro, com uma economia fragilizada, “paralítica” num certo sentido. A França tetraplégica precisa então da ajuda daqueles que sempre desprezou: os bárbaros.
Driss, o ajudante que Philippe contrata num arroubo de vontade de mudança, é, portanto, o bárbaro clássico, muito bem representado por Omar Sy: imigrante senegalês de maneiras rudes, com os pés fincados na realidade concreta e sem paciência para abstrações. Sua boa vontade, no entanto, é do tamanho do seu sorriso, e seu passado, tão negro quanto sua pele (perdoem-me os sociolinguistas). Driss é a força de que a França precisa se quiser superar seus traumas do passado e seguir sua vida. Um braço difícil de dar a torcer, mas que pode mudar a vida de ambos, como é bem fácil imaginar. Mais do que “carregar Philippe” ou ajudá-lo a se vestir, Driss é também o catalisador da mudança na vida de seu amigo. É sua maneira de encarar a vida que fará com que o milionário aprenda o que realmente importa pra ele e tenha coragem de se arriscar em busca da felicidade. Driss, por sua vez, encontra aí a oportunidade para abandonar um passado marginal, desenvolver seus talentos e construir uma vida com a dignidade que lhe era até então inacessível.
É esta metáfora que faz de Intocáveis um filme com níveis diversos de interpretação e capaz de agradar plateias simples e eruditas, funcionando ao mesmo tempo como exercício cinematográfico e entretenimento de massa. Um longa que agradaria tanto Driss como Philippe, ainda que por razões diferentes. E, como poucas coisas produzidas hoje em dia, algo que poderia servir de pedra fundamental para um possível diálogo entre estes dois que, normalmente, sequer se olhariam. Mais do que “uma história real”, como relembra a sequência de encerramento. Trata-se de uma realidade histórica.