Globalização e capitalismo. Dois agentes da contemporaneidade encarregados, entre muitas outras coisas, de transformar de maneira acelerada e abrutalhada as paisagens urbanas, e também de impactar na configuração de territórios rurais cada vez mais conectados à urbe em função de tecnologias e dos demais sintomas do progresso aparentemente inevitável. Desfiguradas por uma lógica imobiliária tão predatória quanto homogeneizadora, as cidades se modificam no ritmo dessa “necessidade” de modernizar estruturas em função de ideais de vida vendidos como incontornáveis. Há terreno reduzido para residências históricas e edificações que confiram identidade e singularidade às localidades. No plano residencial, a preocupação com segurança gradativamente aquartela moradores em espigões de arquitetura despersonalizada, torres vigiadas por seguranças, supostamente à prova da marginalidade crescente. Quanto ao comércio, os estabelecimentos tradicionais dão lugar a armações de concreto e alumínio, num conjunto disposto a pasteurizar as paisagens a fim de atender as novidades celebradas por aí.
O cineasta chinês Jia Zhangke construiu sua carreira como realizador sobre a constatação melancólica (e consternada por certa impotência) desses tempos em constante mutação. Após tornar-se uma potência econômica, a China foi tomada por diversas obras físicas que visaram alinhar as suas bases com as imposições introduzidas por uma maior circulação de capital, este um agente de mediação das relações cotidianas. Desde seu primeiro longa-metragem, Artesão Pickpocket (1997), fica evidente a preocupação com as perdas acarretadas por esse movimento de alterações significativas. O personagem que vaga pelo vilarejo de Shanxi (no qual o cineasta nasceu) se depara com uma realidade diferente, na qual as paisagens geográficas e humanas estão num trânsito desenfreado rumo à renovadas tendências arquitetônicas e comportamentais. Esse sentimento atravessa, com variações agregadoras, Plataforma (2000) e Prazeres Desconhecidos (2002), seus filmes subsequentes, mas atinge o ápice na obra-prima Em Busca da Vida (2006), no qual os protagonistas deambulam por uma localidade em breve submersa e morta.
Jia Zhangke faz desse comentário pesaroso a pedra fundamental de seu cinema inquieto, tanto o ficcional quanto o documental. Seja como for, as modalidades se entrecruzam de jeitos potentes com o intuito de observar essa nova China aberta à economia mundial, uma nação que passou a encarnar inapelavelmente a voracidade dos líderes de um jogo econômico muitas vezes perverso. Esse lado feio do progresso é justamente a varredura dos espaços nutridos de memórias afetivas, prontamente substituídos por versões modernas, ancoradas na “evolução” tornada paradigma pelos departamentos de marketing. Em 24 City (2008), Jia Zhangke documenta o fechamento de uma fábrica de armamentos estatal. Em seu lugar seria construído um complexo de apartamentos com dinâmica de funcionamento integral nas circunvizinhanças. Embaralhando testemunhos e encenações, o realizador se debruça diretamente sobre essa angústia que perpassa integralmente as suas realizações, numas vezes de forma evidente, noutras nas bordas de observações familiares e/ou contendas aparentemente de cunho essencialmente privado.
É certo que vários realizadores da geração de Jia Zhangke se detêm sobre questões parecidas, afinal de contas verter cidades em “não lugares” é um fenômeno global. Todavia, chama a atenção a destacada atuação do brasileiro Kleber Mendonça Filho nesse sentido de oferecer um dado latino-americano a tal constatação cinematográfica do estado das coisas. Já em O Som ao Redor (2012), filmado na rua em que Kleber mora – ou seja, assim como Jia Zhangke o pernambucano começou nos longas-metragens ficcionais com uma história ambientada num local de forte familiaridade e proximidade –, há essa vontade bem-sucedida de compreender a relação com os espaços de moradia e convivência e, além disso, de entender suas conexões a partir de uma ótica histórica que contempla um consistente estudo de classe. O coronelismo, muito presente na constituição social do Nordeste, assume novos contornos com a concentração urbana que deflagra abismos sociais brutais, às vezes num mesmo bairro. Tais abismos são delineados por muros e outros símbolos encarregados de apartar os abastados dos cotidianamente marginalizados.
Mas é com Aquarius (2016) que Kleber se aproxima fortemente do cinema de Jia Zhangke. A protagonista vivida por Sônia Braga é instada a sair do apartamento à beira-mar no qual guarda lembranças. De um lado, a especulação imobiliária, os herdeiros de uma mentalidade meritocrática guiada pela lei canhestra do dinheiro como totem do sucesso. Do outro, alguém disposta a resistir, a nadar contra a maré de tubarões perigosos, pois guiados por uma noção plantada de moradia idealizada. A roda do capitalismo não pode parar (senão morre, como os tubarões, em constante movimento) e a protagonista se coloca como um entrave para essa dinâmica viciada. Já em Bacurau (2019), dirigido em parceria com Juliano Dornelles, Kleber volta a falar de resistência, não apontando diretamente para essa lógica monetária como agente de mudanças forçosas, mas abrindo espaço para constatações de natureza semelhante/complementar. Ao que nos interessa neste pequeno artigo, é bom salientar o desenho de Bacurau como uma comunidade relutante, mantenedora das características que lhe tornam singular, uma cultora da História.
Está aí a chave da desolação que corta, de maneiras distintas, os filmes de Jia Zhangke e Kleber Mendonça Filho. Eles miram o desrespeito com a História, a descartabilidade da memória afetiva, a dificuldade para lidar com demandas dessa atualidade quimérica que aspira freneticamente por um futuro estigmatizado num tecido de sucessivas novidades “benfazejas”. O poder está concentrado nas mãos dos detentores do dinheiro, esta força que permite ditar regras, mesmo as arbitrárias e benéficas de uma meia dúzia de gatos pingados em detrimento da maioria da população. Se no recente Amor Até as Cinzas (2019) Jia Zhangke observa a modificação dos laços, inclusive nos intestinos da máfia, a partir dessa perspectiva de recrudescimento travestido de melhoria, em Bacurau Kleber oferece a noção de que resistir aos ímpetos dos dominantes (neste caso o dos norte-americanos caçadores) nem sempre passa batido pela erupção da violência do oprimido que, diga-se, não é absolutamente equivalente a do opressor. Nessa aproximação possível, o chinês e o brasileiro se alinham por radiografar paisagens afetivas ameaçadas, na iminência de serem desfiguradas pelo “progresso” defendido por quem prioriza a lucratividade.
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