Não há santo mais popular do cristianismo do que São Jorge. Celebrado em prosa e verso, o guerreiro montado no cavalo branco apunhalando o dragão da maldade é uma imagem presente no nosso imaginário, independentemente do credo (ou do não credo) religioso de cada um. Mas, quem foi o homem que se tornou cânone? O que sustenta a santidade de um sujeito nascido na Capadócia, na Turquia, e que virou mártir por conta da disposição de lutar contra os opressores do Império Romano? Essa história é contada no longa-metragem brasileiro Jorge da Capadócia (2024), dirigido e protagonizado por Alexandre Machafer. Na produção que chega aos cinemas em 18 de abril, Jorge (Machafer) é um soldado do imperador Diocleciano, um dos mais jovens militares promovidos a capitão, nascido cristão sob o signo da obediência às ordens. No entanto, ele enfrenta um dilema enorme quando incumbido de sufocar a fé cristã nos arredores, perseguindo e, se preciso, matando aqueles que teimarem em acreditar num único deus – não no panteão politeísta apropriado pelos romanos dos gregos. A superprodução conta essa história do homem transformado em santo por feitos considerados extraordinários, como quebrar uma lança com a própria pele e resistir milagrosamente às torturas de Diocleciano, o imperador temeroso de que Jorge se transformasse em um ícone. Mas, vamos ao nosso contexto histórico.
O IMPÉRIO DE DIOCLECIANO
Grande vilão de Jorge da Capadócia, Diocleciano foi o imperador romano de 284 a 305, quando abdicou do trono. Nascido numa família de baixa posição social, ele fez carreira no exército até se tornar comandante de cavalaria das brigadas do imperador Caro. Mais tarde, foi aclamado por suas tropas como imperador imediatamente depois das mortes de Caro e de seu filho Numeriano durante batalhas contra a Pérsia. No entanto, Caro tinha um herdeiro ainda vivo, Carino, que reivindicou o trono e foi derrotado por Diocleciano em 285, na chamada Batalha do Margo. Diocleciano estabilizou o Império Romano, dividindo-o em dois, o do Oriente e o do Ocidente, governando o primeiro e delegando a liderança do segundo ao seu colega oficial Maximiano. De acordo com alguns historiadores, ele criou o mais burocrático dos períodos do Império Romano, estabelecendo novos centros administrativos e, adiante, se proclamando autocrata. Depois de uma desastrosa medida de congelamento dos preços visando a contenção da inflação, Diocleciano deu início à perseguição contra os cristãos. Por meio de decretos, o imperador previa a revogação dos direitos dos cidadãos que continuassem a se proclamar cristãos e exigia a adoração às religiões então tradicionais. Posteriormente, outras leis decretaram o sacrifício do clero cristão à consagração das divindades romanas. No entanto, a perseguição que se estendeu a outras administrações não coibiu o crescimento cristão – de acordo com estimativas recentes, a perseguição matou 3000 cristãos nas regiões de Diocleciano.
O QUE SABEMOS SOBRE JORGE DA CAPADÓCIA
Também conhecido como Jorge de Lida, Jorge da Capadócia foi um proeminente soldado romano a serviço de Diocleciano, cuja história de vida é envolta em mitos e mistérios. Suas origens são incertas e os dados de seu nascimento são motivo de debate há séculos. Alguns relatos dão conta de que a sua linhagem era cristã dos nobres Ancil, mas outras afirmam que seus pais têm origem grega. Porém, a versão aceita com frequência é a de que ele nasceu na antiga Capadócia, região do centro da Anatólia que atualmente faz parte da Turquia. Ainda na infância, mudou-se à Palestina com a mãe, Policrômia, depois da morte do pai, Gerôncio, em batalha. Policrômica era originária da região palestina da Lida (atual Lod, em Israel). Possuidora de muitos bens, ela educou o filho na fé cristã. Jorge entrou para a carreira militar na adolescência, mais tarde sendo promovido precocemente a capitão do exército romano por conta de sua audácia e do seu espírito de liderança. Aos 23 anos, se tornou nobre, conde da província da Capadócia. Antes de completar 30 anos, um feito e tanto, fazia parte da guarda particular do Imperador Diocleciano.
Com o decreto imperial para a perseguição dos cristãos, Jorge se tornou alvo e viveu um dilema. Diocleciano tentou dissuadi-lo da rebelião, oferecendo-lhe terras e posses para obedecer a suas ordens, mas Jorge preferiu se declarar cristão publicamente, sendo por isso vítima de torturas constantes por parte de seu antigo líder. A cada nova sessão de martírio excruciante, Jorge reafirmava a fé cristã, o que foi aumentando a sua notoriedade nesse cenário cada vez mais efervescido pelas controvérsias de Diocleciano. Não tendo êxito em dobrar o antigo militar de confiança, o imperador mandou degolar Jorge no dia 23 de abril de 303. Os restos mortais foram sepultados em Lida enquanto as histórias de sua fé inabalável cresciam aumentando a sua fama.
COMO ELE FOI CANONIZADO PELA IGREJA CATÓLICA
A canonização de Jorge da Capadócia aconteceu no ano de 494. O Papa Galásio I justificou o processo ao declarar Jorge como um daqueles “cujos nomes são reverenciados pelos homens com justiça, mas cujos atos são conhecidos apenas de Deus”. Portanto, São Jorge entrou oficialmente para o cânone da Igreja Católica em função da intensidade da fé popular nos milagres atribuídos ao homem nascido na Capadócia. Sendo assim, a falta de indícios sólidos para a comprovação histórica de sua trajetória como mártir acabou ficando em segundo plano. No século 18, o Papa Bento 14 declara São Jorge o padroeiro oficial da Grã Bretanha, fato que sucedeu a criação da Ordem dos Cavaleiros de São Jorge pelo rei Eduardo III da Inglaterra. E até mesmo por seu caráter bélico, a campanha das cruzadas pregressa tinha consolidado o mito do santo guerreiro, abrindo caminho à sua enorme popularidade em várias das nações do Ocidente.
O lendário monarca britânico Ricardo Coração de Leão, líder da primeira grande cruzada, o instituiu como padroeiro da Inglaterra. Especula-se que a imagem de São Jorge montado num cavalo derrotando o dragão da maldade seja uma apropriação do culto pagão a Marte e Ares, divindades do politeísmo retratadas muitas vezes subjugando monstros como símbolo da vitória do bem sobre o mal. O culto a São Jorge foi transmitido ao longo dos séculos também por meio das representações artísticas que aumentaram sua popularidade. Carpaccio e Donatello, pintores famosos, retrataram São Jorge em telas. Na peça Henrique V, William Shakespearre apresenta a devoção dos guerreiros a São Jorge nos batalhões ingleses na Guerra dos Cem Anos.
SÃO JORGE E O BRASIL
O culto a São Jorge foi introduzido no Brasil junto com a colonização, uma vez que o santo era conhecido pelos portugueses. Padroeiro dos escoteiros e da Cavalaria do Exército Brasileiro, São Jorge foi disseminado aqui também por conta da nossa disposição sincrética de mesclar credos e figuras de devoção. Religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, veneram São Jorge na figura equivalente de Ogum. A relação entre o orixá africano e o santo de origem católica está em elementos comuns como a batalha, a espada e a coragem. Na cultura iorubá, Ogum possui temperamento forte e personalidade justiceira, também frequentemente colocado na posição de soldado e patrono dos exércitos. Um dos mais populares clubes de futebol do Brasil, o Sport Club Corinthians Paulista, tem como padroeiro São Jorge – tanto que o dia 23 de abril, o dia do santo, também é considerado o Dia do Torcedor Corinthiano. Há duas versões que explicam essa ligação: 1) o clube que inspirou a criação do Corinthians, Corinthian Casuals, da Inglaterra, tinha como padroeiro São Jorge; a sede do clube está no terreno da antiga Fazenda São Jorge, situado na Rua São Jorge, então o santo foi escolhido como protetor da sede social.
Nas artes brasileiras, são inúmeras as representações de São Jorge. Uma das mais emblemáticas é a letra da música “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben Jor, que em tom de oração louva a ligação do intérprete com a coragem que caracteriza São Jorge – “(…) Armas de fogo, meu corpo não alcançará / Espadas, facas e lanças se quebrem / Sem o meu corpo tocar / Cordas, correntes se arrebentem / Sem o meu corpo amarrar / Pois eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge”. A outra, agora cinematográfica, é a alusão da luta entre São Jorge e o Dragão na cena em que um homem popular golpeia um latifundiário, assim o povo sendo o santo guerreiro contra o capitalista associado ao dragão da maldade em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), longa-metragem de Glauber Rocha premiado no Festival de Cannes daquele mesmo ano. Agora, Alexandre Machafer coloca outro elemento nessa devoção do brasileiro por São Jorge, partindo do elogio ao soldado que superou o dilema decorrente das ordens que não desejava seguir para oferecer ao mundo um exemplo de força de vontade e resiliência contra a opressão.