A transcendência do seu inferno criador e ao mesmo tempo sua razão de viver. A direção cuidadosa de Luiz Rangel e Paulo Duarte em Réquiem para Laura Martin nos transporta para um universo ao mesmo tempo sombrio, delirante e transcendente de um personagem hermético e minimalista. De forma visceral e extremamente cuidadoso com os detalhes, Anselmo Vasconcellos encarna o solitário maestro inalando toda a sua complexidade, sua loucura, tormento e raros/preciosos momentos de ternura que ele só se permite ao lado de sua Musa. Toda a ambiguidade daquele que está (quase) irremediavelmente solitário nos altos patamares do sucesso é revelada suscintamente, em doses homeopáticas, nos intimando a seguir as trilhas interiores mais do que tortas desse temido personagem. Viramos suas testemunhas, seus cúmplices, detetives desses caminhos tão imprevisíveis.
A cena de 15 minutos, protagonizada pela atriz Claudia Alencar, sozinha em cena, é regada de deliciosas pinceladas almodovarianas tipo as vistas em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) e outras de um teatro que vive seu ensaio geral antes da première. Esse literal work in progress, sem perdão arranca o espectador de sua zona de conforto que, mesmo intuindo o desfecho, anseia pela sede de acompanhar o intermezzo, numa postura altamente voyerista, ao mesmo tempo em que vai testando e revendo seus próprios limites.
Mãe, filha, irmã, a melhor amiga, a inimiga com e a sem compaixão, tudo isso acompanhado de uma antropofagia emocional de anos! Vibramos junto com Claudia, deixada livre para, com muita intuição e ousadia, levar todas essas mulheres à plenitude, ou melhor, ressuscitá-las.
Réquiem para Laura Martin é um filme feminista, emancipatório, e o melhor de tudo, sem em qualquer momento anunciar previamente a pretensão de ser politicamente correto e/ou estar em harmonia com o zeitgeist. A direção de arte é uma homenagem ao cinema francês, principalmente à Jean-Luc Godard, além de nos fazer relembrar da dicotomia feroz vivida por August Rodin e Camille Claudel no filme de Bruno Nuytten (Camille Claudel, 1988). O guiar da câmera na mão é um procedente contraponto à todo o resto. Movimentos rápidos para momentos de grande interioridade e lentidão para a dialética quando é reflexiva.
Réquiem para Laura Martin, um filme profundo, o resultado de trabalho conjunto e intenso de toda a equipe, a constatar nos diálogos, nos cenários e, especialmente, no caráter subversivo e filigrano da interpretação de Anselmo Vasconcellos, absolutamente imprescindível para que possamos vislumbrar e nos surpreender com todas as suas idiossincrasias do maestro.
(N.E.: A autora deste artigo, Fatima Lacerda, fez parte da equipe de produção de Réquiem para Laura Martin, e aqui faz um relato bastante pessoal das suas impressões, sem nenhuma pretensão crítica)