O cinema brasileiro voltado à ecologia está repleto de obras estimulando a preservação e o cuidado com a flora e a fauna. No entanto, em plena pandemia de coronavírus, diante de um governo que age para destruir a Amazônia e a Mata Atlântica, além de atacar os direitos dos índios para privilegiar os barões do agronegócio, o discurso ecológico se torna ainda mais combativo e politizado. Na Mostra 4, O Curta Vazantes 2021 se dedica especificamente ao triângulo formado por ecologia, distopia e pandemia.
Dois títulos refletem de modo explícito a vivência da Covid-19. Chega a ser estranho assistir às primeiras histórias onde personagens usam máscaras, passam álcool gel nas mãos, sofrem com a distância dos familiares e com o receio pela sobrevivência de seus entes queridos nos hospitais. A ficção espanhola Marcianos (2021), de David del Aguila, acompanha a jornada exaustiva de uma enfermeira plantonista em setores que atendem pacientes com Covid. O título faz referência às roupas especiais, máscaras e proteções que transformam os profissionais de saúde em seres extraterrestres caminhando pelos corredores.
Já o documentário paulista Reexisto (2020), de Lethicia Galo e Rodrigo Campos, parte de inúmeras fotografias elaboradas por artistas em seus períodos de reclusão, para debater o peso do distanciamento social, além da indignação com o governo Bolsonaro. Imagens de panelaços e áudios do presidente minimizando a “gripezinha” traçam um percurso sucinto e doloroso de nossa crise política, agravada pela crise sanitária. Ambas obras apelam para o aspecto mais humano e íntimo da pandemia: no caso deste último filme nacional, a diretora apresenta autorretratos nus, além da ultrassonografia revelando sua gravidez. Os letreiros informam o nome do bebê.
Apesar de seguirem por caminhos estéticos e de linguagem distintos, ambos os projetos dialogam em chave naturalista com a realidade ao nosso redor, acreditando que o cinema precisa efetuar seu papel de registro dos fatos, e de disputa de narrativas face aos governantes que subvertem dados e pregam a desinformação. Trata-se de obras que desejam estar o mais perto possível da vivência cotidiana, medindo seu valor pela capacidade de serem precisos e atuais – em outras palavras, compram o desafio de traçar o retrato de uma crise enquanto ela ainda perdura, sem a possibilidade de distanciamento.
O brasileiro-francês Écocide (2020), de Liliane Mutti, ataca a gestão atual de maneira igualmente direta, tendo como foco, no entanto, o descaso com as florestas. De estrutura simples, o documentário acompanha uma vigia bilíngue efetuada em Paris para denunciar os crimes de Bolsonaro contra a humanidade e o patrimônio nacional. Neste caso, as palavras e os letreiros se tornam mais potentes do que seu referencial imagético: após captações em tom de urgência da reunião de pessoas, o curta parte para uma espécie de manifesto escrito, com frases desfilando na tela, enumerando as atitudes condenáveis do governo de extrema-direita.
A vontade de constituir um grito de alerta se assemelha ao gesto da ficção-científica carioca Cadeia Alimentar (2019), de Raphael Medeiros. Explorando a distopia – subgênero particularmente eficaz para discutir involuções políticas e sociais -, efetua o retrato de um Brasil em colapso, representado por prédios em ruínas e população empobrecida, alimentada pelas palavras fanáticas dos pastores neopentecostais. O personagem principal é um homem negro, emudecido e com cabeça de peixe – menção à desumanização e à monstruosidade, mas também à fusão entre a humanidade e a natureza.
Talvez a presença de um sujeito negro sem voz nem rosto incomode enquanto representação racial, porém o realizador faz questão de equilibrar o panorama social através dos demais personagens. O projeto resulta numa produção grandiosa, dotada de efeitos visuais eficazes, ostensivos movimentos de câmera e a presença de atores de renome como Mateus Solano, no papel de um pescador adepto das teorias obscurantistas. Em sua verve de denúncia, a obra apela à descrição de um mundo grotesco, apesar da elegância das imagens.
Completando a sessão, a animação espanhola Trazo Crítico: Contaminación (2020), dirigida por Vicente Mallols, escancara o absurdo de um sujeito vivendo numa ilha deserta, sujando o próprio local onde mora. Rapidamente (em menos de quatro minutos), ele sofre as consequências de seu gesto, ecoando uma das frases de Cadeia Alimentar: “A natureza está esperando apenas um bom motivo para se vingar”. De fato, estas narrativas abordam diferentes maneiras de retaliação, entre a justiça, o justiçamento e a vingança, sejam elas simbólicas ou concretas. Os cinco filmes expõem o funcionamento social julgado incorreto, enveredando pelo humor (Trazo Crítico), pela fantasia (Cadeia Alimentar), pelo drama clássico-narrativo (Marcianos), pelo documentário caseiro em primeira pessoa (Reexisto) e pelo documentário de denúncia (Écocide).
Tamanha frontalidade ao lidar com o tema pode gerar a impressão de didatismo. As frases “Já não se fala tanto de trabalho, já que trabalho não há” (Reexisto); “O homem é a medida de todas as coisas. Estamos no topo da cadeia alimentar” (Cadeia Alimentar); “Desde agosto de 2020, a Amazônia está em chamas” (Écocide) e “Quero ver uma cara antes de morrer” (Marcianos) escancaram o discurso de modo explicativo. Ao invés de julgar esta escolha por um viés positivo ou negativo, é necessário em primeiro lugar perceber a estratégia enquanto sintoma: todos os autores sentem a necessidade de abordar a Covid, o desmatamento e a crise política pelo prisma pedagógico.
Isso significa que, em tempos de informações falsas, incompletas, quando autoridades não são responsabilizadas pelos medicamentos ineficazes que preconizam, ou pelas atitudes contraproducentes defendidas, os artistas se encarregam, em primeiro lugar, de colocar ordem no caos. Trata-se de narrativas lineares em seus discursos e linguagens, elencando causas e consequências, o antes e depois de 2021. Assim, pretendem fornecer uma mensagem clara aos espectadores acostumados a informações fragmentadas. O cinema toma para si a função de esclarecimento e alerta, algo nem sempre imputada às artes.
Em paralelo, os filmes valorizam a comunicação pelo choque. O confronto ocorre por meio da fala (o manifesto de Écocide, as narrações em off de Reexisto) e das imagens de absurdo, ressignificando o real através por meio da estética do pesadelo (Marcianos, Cadeia Alimentar). Mesmo a lúdica animação infantil investe na gravidade da narrativa, ainda que diluída pelo humor. A Mostra 4 do Curtas Vazantes 2021 aposta numa abordagem solene para discutir temas igualmente sombrios. Ao invés de breves alusões poéticas e otimistas, projetando a superação dos obstáculos, os artistas dão um passo atrás, alertando-nos a respeito dos problemas.
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