20210618 ela que mora no andar de cima papo de cinema 800

A seleção número 5 da Mostra Curta Vazantes: Cinema em Comunidade oferece um recorte temático interessante. De que maneira uma animação infantil em stop motion, uma biografia de Frida Kahlo e um ataque violento de fantasmas poderiam conviver na mesma sessão? Ora, todos representam retratos da alteridade, do outro, aquele diferente das normas. Que ele seja um indivíduo LGBTQIA+ num mundo de heterossexualidades, um inseto entre os humanos ou um alienígena em meio aos terráqueos, constitui a fuga à moral e aos bons costumes.

A temática da orientação sexual ocupa uma parte importante da sessão, sendo mencionada em três dos cinco filmes. No espanhol Polter (2020), de Álvaro Vicario, um homem é atormentado por fantasmas dentro de sua casa, que movem os objetos por todos os lados – o título faz referência a “poltergeist”. Ele busca soluções desesperadas para resolver o fenômeno, até descobrir que a aceitação de sua sexualidade está diretamente envolvida no combate às ameaças sobrenaturais.

 

20210618 polter papo de cinema 750
Polter

 

Através desta fábula cômica, o diretor promove uma maneira interessante de pensar o cinema de gênero como espaço da diferença, e palco privilegiado para abordar o medo (de si ou dos outros). Os tormentos invisíveis dentro da casa se convertem em metáfora para a pressão interna para a autodescoberta de José. O tom é assumidamente farsesco, ressaltando outro traço recorrente dos curtas-metragens escolhidos: a atribuição da leveza a temas considerados graves.

Se o filme espanhol lida com a aceitação gay, o brasileiro Ela que Mora no Andar de Cima (2020), de Amarildo Martins, privilegia o afeto entre duas mulheres. Luzia (Marcélia Cartaxo), mulher solitária e ótima cozinheira, aproxima-se da bela vizinha por quem está apaixonada. Neste caso, mais do que cego, o amor se revela benevolente no que diz respeito ao paladar: Luzia aceita experimentar as receitas intragáveis de Carmem pela possibilidade de ficarem juntas.

 

20210618 ela que mora no andar de cima papo de cinema 750
Ela que Mora no Andar de Cima

 

A exemplo de Polter, o cineasta mergulha na fábula lúdica, de poucos diálogos, marcada pelo tom doce: além do excesso de açúcar nas receitas, os figurinos, cenários e objetos transmitem um universo cor-de-rosa, filtrado pelo amor de Luzia. A conclusão brinca com o símbolo dos bolos, entre o doce e o amargo. Curiosamente, o filme reflete um dos raros retratos lésbicos envolvendo mulheres acima dos 50 anos de idade.

Após a homossexualidade masculina e feminina, a bissexualidade é discretamente mencionada na animação mexicana La Última y nos Vamos (2021), de Susy López P. A artista especialista em fantoches reconstrói a vida de Frida Kahlo através das marionetes num cenário teatral. A cineasta assume a vocação artificial: ela mostra a manipulação dos bonecos, a luz forte do refletor, os movimentos dos bonecos. O caráter lúdico é permitido neste mundo onde o realismo se torna secundário.

 

20210618 la ultima y nos vamos papo de cinema 750
La Última y nos Vamos

 

Nesta construção, o principal interlocutor de Frida é a própria morte – algo pertinente para a pintora que passou toda a vida adulta lutando contra as dores do corpo. O diálogo entre a artista e um esqueleto pauta a dinâmica do filme, que permite a alusão à bissexualidade de Frida, à relação com os pais e com o amado Diego. Novamente, o terror (a conversa com o esqueleto) se converte em ferramenta poética, a exemplo de Polter, para retirar a solenidade dos temas tabus.

A animação cômica e sobrenatural se encontra igualmente em S13p15a (2021). Com apenas um minuto de  duração, o filme espanhol de Jesús Loniego aborda uma abdução por extraterrestres. O cenário sombrio, em preto e branco, remete ao cinema clássico de monstros, enquanto os personagens em stop motion aludem à possibilidade de invasões alienígenas serem sinalizadas por placas na rua.

 

20210618 s13p15a papo de cinema 750
S13p15a

 

A sugestão de que uma ameaça de outro planeta seja codificada e aceita socialmente (a ponto de ter um aviso institucional para isso) gera o humor leve e eficaz do pequeno filme. Os códigos sociais se inserem igualmente em outra animação em stop motion: o espanhol Piccolino: Una Aventura en la Ciudad (2020), de Giovanni Maccelli.

Este título, o único assumidamente infantil da mostra 5, utiliza a metáfora de um bichinho da maçã para representar a abertura ao mundo. No caso, Piccolino precisa sair pela primeira vez de sua casa-fruta para conhecer tanto os perigos quanto os prazeres da vida em comunidade. Junto de uma barata, adquire autonomia a ponto de se tornar um cidadão do mundo.

 

20210618 piccolino papo de cinema 750
Piccolino: Una Aventura en la Ciudad

 

A construção do curta-metragem aposta em ferramentas clássicas da narração destinada aos pequenos: a trilha sonora educativa sobre a descoberta dos ruídos da cidade, as vozes nada naturalista das atrizes, a mistura entre os traços simples da animação com a realidade crua das ruas em live-action. Ao final, resta a mensagem de que é preciso sair de sua concha, correr riscos, interagir com as pessoas para descobrir sua verdadeira força.

Ao final, a seleção Descoberta lida essencialmente com a aceitação de si próprio e dos outros. Trata-se da compreensão do corpo debilitado de Frida Kahlo, do corpo diabético de Luzia e do corpo gordo de José, chamado de “Cebolinha” pela esposa; mas também dos desejos, das pulsões e dos amores sem restrições sociais. Existe um mundo interessante, rico e diferente lá fora – mesmo que “lá fora” signifique o apartamento de cima, as ruas da cidade ou um outro planeta.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *