A seleção número 5 da Mostra Curta Vazantes: Cinema em Comunidade oferece um recorte temático interessante. De que maneira uma animação infantil em stop motion, uma biografia de Frida Kahlo e um ataque violento de fantasmas poderiam conviver na mesma sessão? Ora, todos representam retratos da alteridade, do outro, aquele diferente das normas. Que ele seja um indivíduo LGBTQIA+ num mundo de heterossexualidades, um inseto entre os humanos ou um alienígena em meio aos terráqueos, constitui a fuga à moral e aos bons costumes.

A temática da orientação sexual ocupa uma parte importante da sessão, sendo mencionada em três dos cinco filmes. No espanhol Polter (2020), de Álvaro Vicario, um homem é atormentado por fantasmas dentro de sua casa, que movem os objetos por todos os lados – o título faz referência a “poltergeist”. Ele busca soluções desesperadas para resolver o fenômeno, até descobrir que a aceitação de sua sexualidade está diretamente envolvida no combate às ameaças sobrenaturais.

 

Polter

 

Através desta fábula cômica, o diretor promove uma maneira interessante de pensar o cinema de gênero como espaço da diferença, e palco privilegiado para abordar o medo (de si ou dos outros). Os tormentos invisíveis dentro da casa se convertem em metáfora para a pressão interna para a autodescoberta de José. O tom é assumidamente farsesco, ressaltando outro traço recorrente dos curtas-metragens escolhidos: a atribuição da leveza a temas considerados graves.

Se o filme espanhol lida com a aceitação gay, o brasileiro Ela que Mora no Andar de Cima (2020), de Amarildo Martins, privilegia o afeto entre duas mulheres. Luzia (Marcélia Cartaxo), mulher solitária e ótima cozinheira, aproxima-se da bela vizinha por quem está apaixonada. Neste caso, mais do que cego, o amor se revela benevolente no que diz respeito ao paladar: Luzia aceita experimentar as receitas intragáveis de Carmem pela possibilidade de ficarem juntas.

 

Ela que Mora no Andar de Cima

 

A exemplo de Polter, o cineasta mergulha na fábula lúdica, de poucos diálogos, marcada pelo tom doce: além do excesso de açúcar nas receitas, os figurinos, cenários e objetos transmitem um universo cor-de-rosa, filtrado pelo amor de Luzia. A conclusão brinca com o símbolo dos bolos, entre o doce e o amargo. Curiosamente, o filme reflete um dos raros retratos lésbicos envolvendo mulheres acima dos 50 anos de idade.

Após a homossexualidade masculina e feminina, a bissexualidade é discretamente mencionada na animação mexicana La Última y nos Vamos (2021), de Susy López P. A artista especialista em fantoches reconstrói a vida de Frida Kahlo através das marionetes num cenário teatral. A cineasta assume a vocação artificial: ela mostra a manipulação dos bonecos, a luz forte do refletor, os movimentos dos bonecos. O caráter lúdico é permitido neste mundo onde o realismo se torna secundário.

 

La Última y nos Vamos

 

Nesta construção, o principal interlocutor de Frida é a própria morte – algo pertinente para a pintora que passou toda a vida adulta lutando contra as dores do corpo. O diálogo entre a artista e um esqueleto pauta a dinâmica do filme, que permite a alusão à bissexualidade de Frida, à relação com os pais e com o amado Diego. Novamente, o terror (a conversa com o esqueleto) se converte em ferramenta poética, a exemplo de Polter, para retirar a solenidade dos temas tabus.

A animação cômica e sobrenatural se encontra igualmente em S13p15a (2021). Com apenas um minuto de  duração, o filme espanhol de Jesús Loniego aborda uma abdução por extraterrestres. O cenário sombrio, em preto e branco, remete ao cinema clássico de monstros, enquanto os personagens em stop motion aludem à possibilidade de invasões alienígenas serem sinalizadas por placas na rua.

 

S13p15a

 

A sugestão de que uma ameaça de outro planeta seja codificada e aceita socialmente (a ponto de ter um aviso institucional para isso) gera o humor leve e eficaz do pequeno filme. Os códigos sociais se inserem igualmente em outra animação em stop motion: o espanhol Piccolino: Una Aventura en la Ciudad (2020), de Giovanni Maccelli.

Este título, o único assumidamente infantil da mostra 5, utiliza a metáfora de um bichinho da maçã para representar a abertura ao mundo. No caso, Piccolino precisa sair pela primeira vez de sua casa-fruta para conhecer tanto os perigos quanto os prazeres da vida em comunidade. Junto de uma barata, adquire autonomia a ponto de se tornar um cidadão do mundo.

 

Piccolino: Una Aventura en la Ciudad

 

A construção do curta-metragem aposta em ferramentas clássicas da narração destinada aos pequenos: a trilha sonora educativa sobre a descoberta dos ruídos da cidade, as vozes nada naturalista das atrizes, a mistura entre os traços simples da animação com a realidade crua das ruas em live-action. Ao final, resta a mensagem de que é preciso sair de sua concha, correr riscos, interagir com as pessoas para descobrir sua verdadeira força.

Ao final, a seleção Descoberta lida essencialmente com a aceitação de si próprio e dos outros. Trata-se da compreensão do corpo debilitado de Frida Kahlo, do corpo diabético de Luzia e do corpo gordo de José, chamado de “Cebolinha” pela esposa; mas também dos desejos, das pulsões e dos amores sem restrições sociais. Existe um mundo interessante, rico e diferente lá fora – mesmo que “lá fora” signifique o apartamento de cima, as ruas da cidade ou um outro planeta.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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