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Entre as sessões de curtas-metragens organizadas pela Mostra Curta Vazantes: Cinema em Comunidade 2021, uma delas propõe um interessante recorte da infância em relação com o meio ao redor. Na Mostra 3, são apresentados quatro filmes: o cearense O Quintal de João (2020), de João Marcos Maia, o mineiro 4 Bilhões de Infinitos (2020), de Marco Antônio Pereira, o catarinense Baile (2019), de Cíntia Domit Bittar, e o espanhol Roberto (2020), de Carmen Córdoba González.

Em comum, as quatro histórias registram o conhecimento do mundo adulto pela perspectiva da infância. Os alunos de Baile são confrontados à disparidade entre homens e mulheres na Câmara dos Deputados catarinense; os irmãos de 4 Bilhões de Infinitos elaboram para si próprios a condição de pobreza; os amantes de Roberto se confrontam à dificuldade de aceitar diferentes padrões de corpos, e João percebe o poder do registro do real em imagens.

 

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4 Bilhões de Infinitos

 

Curiosamente, estas descobertas passam pela arte. Na obra espanhola, a única animação do grupo, um artista plástico conquista a tímida vizinha por meio de quadros e desenhos de corações enviados por um varal em comum. O pequeno João rapidamente assume a posição de diretor do curta-metragem em que se insere, ordenando aos adultos que apontem a câmera para uma ou outra direção, e que filmem os elementos escolhidos por ele.

A protagonista de Baile, filha de uma fotógrafa, compreende o potencial das fotografias, capazes de eternizarem instantes no tempo. “Essa pode ser a última foto da vida dela”, explica a mãe a respeito do retrato de uma mulher idosa. A propósito de eternidade, os irmãos mineiros imaginados por Marco Antônio Pereira discutem a visão do real, da imaginação (o portal no início) enquanto rejeitam as criações de massa: “TV é muito solitária”, declaram. Em seguida, encaram a câmera, ressaltando a importância do dispositivo.

 

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Baile

 

É interessante que os quatro cineastas condicionem a percepção do real e a valorização da memória por meio da representação artística. Ao mesmo tempo, oferecem um mosaico agridoce do trabalho artístico: as fotografias da mãe profissional mal garantem o sustento da casa; a televisão não proporciona diversão; os desenhos de Roberto jamais o retiram do pequeno apartamento onde mora desde a infância. Os projetos optam por um realismo poético, tão lúdico quanto desencantado no que diz respeito aos problemas sociais.

Neste sentido, o premiado 4 Bilhões de Infinitos se revela particularmente bem-sucedido, tanto no no uso da ficção científica quanto no retrato social desprovido de fetiches e idealizações. O jovem ator mirim, em especial, demonstra ótimo traquejo com diálogos e uma espontaneidade bastante específica do cinema mineiro recente (vide as obras de André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Affonso Uchôa e João Dumans). Este olhar tão humanista quanto cru às desigualdades tem produzido algumas das melhores obras brasileiras recentes.

 

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O Quintal de João

 

Baile efetua uma comparação entre os retratos caseiros e os retratos oficiais de deputados, permitindo à fotografia atravessar o público e o privado. Qual é a importância de uma foto para um membro da família, e de uma foto oficial pendurada na parede de uma instituição do governo? O curta-metragem incentiva o questionamento de padrões e convenções sociais, fazendo da arte um veículo de distanciamento (e rompendo a fronteira entre os mundos masculino-feminino, e político-privado por meio de um singelo retrato colado à parede). Talvez o discurso se torne um pouco didático em certos diálogos, porém transmite com clareza seu discurso.

Em oposição às duas ficções, O Quintal de João adota o formato misto de documentário ficcional em primeira pessoa, habitual em registros familiares informais. O projeto possui, no melhor e no pior aspecto do termo, uma aparência caseira, o que implica tanto na proximidade e no afeto com os personagens, quanto numa abertura ao acaso próxima da aleatoriedade. Em consequência, as imagens de João controlando ações no quintal se interrompem sem um final propriamente dito, como se a obra encontrasse valor na abordagem ao invés do discurso – em outras palavras, o caminho interessa mais do que as conclusões retiradas desta observação.

 

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Roberto

 

Roberto, único projeto internacional, constitui o ponto fora da curva. Caso relativamente comum de animação sem diálogos buscando seu principal valor nos sentimentos amorosos, traz uma história de aproximação entre dois vizinhos. O pintor manifesta durante décadas sua paixão pela vizinha, que se recusa a encontrá-lo por vergonha do corpo gordo. As cores quentes, as mensagens de corações e o final feliz proporcionam um otimismo amargo, visto que a concretização do amor passa pelo emagrecimento (seja ele simbólico ou efetivo). Por este motivo, a mensagem pode ser considerada gordofóbica, ao propor uma transformação do corpo ao invés da autoaceitação de diferentes formas de belezas. Aliás, por que elevar o rapaz ao posto de personagem-título, se a história não é contada pelos olhos dele?

Ao final, a mostra se revela coesa ao desenhar a infância longe de um período de maravilhas. Pelo contrário, os diretores optam pela desafetação inerente ao contato com conflitos da vida em sociedade. Por isso, os dilemas decorrem da dualidade entre ficar em casa ou sair para o mundo: em seu quintal, João é rei e diretor, enquanto a vizinha gorda se encontra protegida dos olhares alheios. Fora de casa, a garota tem seu corpo exposto, o cinema dos irmãos mineiros se limita à imaginação devido à falta de eletricidade, e a garota catarinense percebe que as fotografias não garantem a igualdade de oportunidades. Sair de casa é tão perigoso quanto necessário.

Filmes vistos online na 7ª Mostra Curta Vazantes: Cinema em Comunidade, em junho de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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