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Mulher-Maravilha: O Espírito da Verdade

Publicado por
Matheus Bonez

O mundo dos homens não te merece”, diz a Rainha Hipólita à sua filha, Diana, antes desta partir para acabar com a guerra na realidade fora de Themyscira. A regente das Amazonas não poderia estar mais certa. Diana é um arquétipo da bondade que ninguém poderia dizer que existe no nosso mundo real e mundano. E é justamente esse seu maior trunfo, dentro e fora das telas: a Mulher-Maravilha que vemos aqui é tal e qual suas diversas origens das HQs. Um poço de esperança que surge para resgatar o verdadeiro significado da palavra heroísmo. Alguém que põe em risco a própria vida pelos outros, nunca deixando de lado sua essência ou convicções. Ela demora a entender que o mundo do patriarcado é podre, mas, ainda assim, não dá bola. Luta pelo correto, por sua crença inabalável no potencial do bem da humanidade.

Foram mais de sete décadas de espera. A princesa Diana de Themyscira apareceu pela primeira vez nos quadrinhos em dezembro de 1941, criada por William Moulton Marston, e alguns meses depois ganhou sua própria revista. Ao longo de anos, se tornou a super-heroína mais famosa do mundo, potencializando sua imagem para além das HQs e criando uma figura mítica no cenário pop global, seja através da leitura ou até de Lynda Carter em sua inesquecível série de TV dos anos 70.  Os preceitos de igualdade e amor vão além do feminismo, o que atinge homens e mulheres de todos os cantos do planeta. Então, por que a demora em lançar um filme protagonizado por ela? Discussões à parte sobre o machismo da indústria hollywoodiana, o longa-metragem com seu nome estampado pode ter levado mais tempo que deveria para chegar às telonas, mas veio na hora certa: Mulher-Maravilha é estrelado por uma grande mulher, dirigido por outra espetacular e voltado a todo e qualquer tipo de público. Acima de tudo, agrada não apenas aos fãs ardorosos das HQs, mas também a quem não conhece a verdadeira história de Diana Prince.

A diretora Patty Jenkins foi incumbida da árdua missão de transpor às telas a origem da Amazona em toda sua graça. E não perde tempo em avançar a história, partindo de Diana ainda pequena, e sua curiosidade pelas técnicas marciais das irmãs, das narrativas de seu nascimento e da queda dos deuses gregos. Tudo é contado de forma didática, com pinturas animadas que lembram os traços de Michelangelo. Ao mesmo tempo em que é orientada com devoção por sua mãe, a Rainha Hipólita (Connie Nielsen), secretamente a garota treina com sua tia, a general Antílope (Robin Wright), a maior guerreira de todas. Esse primeiro e rápido ato na ilha de Themyscira é fotografado com várias cores quentes que remetem ao calor do ambiente em que Diana (Gal Gadot) cresceu, traço que vai ser uma característica de sua personalidade ao longo de toda a projeção.

A coisa muda de figura com a entrada de Steve Trevor (Chris Pine), soldado da Inteligência Britânica que foge dos alemães. Está armado o terreno para o posicionamento da princesa na Primeira Guerra Mundial, ainda mais após um confronto feroz no litoral da ilha, uma das cenas de batalha mais incríveis dos últimos tempos no cinema, com as mulheres tomando à frente até a vitória, mesmo com um trágico preço. É quando o mundo de Diana se torna cinza, opaco, numa clara alusão às batalhas que virão. Nem por isso a trama deixa de ter bom humor, quer seja pelos coadjuvantes, por sua química com Trevor (provavelmente um dos casais das HQs mais bem explorados no cinema) ou, e especialmente, pela ingenuidade de Diana em seu choque com o mundo dos homens. De não saber o que é um relógio, a falta de compreensão sobre as roupas femininas e, mais ainda, a razão do porquê elas não tomam decisões junto ao sexo masculino, a princesa de Themyscira é como uma criança inteligente que precisa aprender na marra como são as coisas fora de casa. Algo que ela entende, sim, com muita luta.

Muito dessa humanidade que faz o público se identificar com a personagem tem um nome, acima de tudo: Gal Gadot. Quem diria que a modelo e ex-miss israelense, cujas aparições mais famosas no cinema se restringiam a pontas na série Velozes e Furiosos, seria um verdadeiro presente dos deuses? Sua naturalidade ao interpretar Diana é de uma simplicidade genuína, numa mescla de beleza e incompreensão da falta de amor ao próximo, potencializada pelas ações na Primeira Guerra Mundial. É em cenas de extrema importância para o gênero feminino que Gadot mostra a que veio. Uma delas ainda quando não foi trajada com o uniforme para o combate. Como parceira de Steve Trevor, ela mete a boca no trombone numa reunião de autoridades, obviamente, do sexo masculino. É também o bate-boca com Trevor, logo depois disso, e os sequentes “nos dedos” que Diana dá nele que reforçam um girl power tão pouco visto no cinema de ação.

Porém, a principal cena do filme não é o embate final, a criação em Themyscira ou o romance com Steve Trevor. É sua transformação. Ou, melhor dizendo, a entrada triunfal de uniforme em meio a uma terra de ninguém. Quando Diana se revolta de vez com a miséria causada pela guerra, ela confronta Trevor, coloca sua tiara e sobe de maneira apoteótica a escada que dá acesso a um campo onde só leva tiros, se protegendo com os braceletes e o escudo. Sua intenção não é cobrir de porrada qualquer um que fique no caminho. Ela quer abrir esses caminhos para que outros possam andar livremente. É o melhor momento do filme e, muito provavelmente, um dos mais emblemáticos dos longas de super-heróis. É como Christopher Reeve voando pela primeira vez em Superman: O Filme (1978). Não à toa as referências, já que todo os takes de Mulher-Maravilha parecem remeter à obra dirigida por Richard Donner, seja pela leveza da mescla de humor, ação e dramaticidade, na mesma medida, ou, especialmente, por mostrar a inspiração que é um super-herói de verdade.

Além de tudo, Mulher-Maravilha é uma importante e fundamental peça nas discussões de gênero, que tanto cercam os debates atuais. Já houve outros poucos (e péssimos) filmes de heroínas no passado, que não souberam retratar a força do sexo feminino. Aqui elas é que tomam a frente, por trás e, principalmente, diante das câmeras. Diana pode ser ingênua, mas nunca ignorante. Por isso, todas as decisões que ela toma são acertadas, sem precisar de algum homem para lhe ditar o que fazer. Tanto assim o é que, mesmo com sua aura de macho protetor, Trevor entende ser Diana muito mais capaz que ele ou qualquer outro em campo. Como o próprio diz em um importante momento do filme “eu preciso salvar algumas vidas para você poder salvar o mundo”. Sim, ele sabe, é para isso que a princesa está ali. E ótimo que muitas garotas tenham uma inspiração desse porte. Acima disso, uma heroína que possam imitar nas artes de combate, assim como a pequena Diana fazia quando pequena em meio às outras Amazonas.

Não que o longa-metragem seja impecável. Há alguns problemas de roteiro, um CGI que não funciona 100 por cento de forma crível, lutas em slow-motion em demasia e aquele toque de Zack Snyder com sua megalomania na sequência de ação final. Além disso, os vilões também são figuras rasas e quase caricaturais, lembrando muito os arquétipos dos quadrinhos da Era de Ouro. Porém, isso só reforça que não são eles as estrelas da festa e, muito menos, a principal razão da luta de Diana. Ela chegou ao mundo dos homens para ensinar o verdadeiro sentido de compreensão e fazer bem ao próximo, sabendo que batalhas no campo físico são necessárias, mas, ainda mais as ideológicas, para evitar que outras guerras e conflitos surjam.

A Mulher-Maravilha que vemos aqui é um verdadeiro espírito da verdade. Ainda bem que Gal Gadot, Patty Jenkins e toda sua equipe souberam compreender e repassar isso às telas. Este pode não ser o melhor filme do gênero já realizado, ainda que seja um ponto de virada para a DC Comics nas telas. Porém, com certeza, é um dos mais honestos que já se viu. E nem é preciso usar o laço da verdade para perceber isso.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.

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