Primeiro veio uma avalanche de marketing e mídia. Prometeram que Ninfomaníaca seria a coisa mais ultrajante, provocadora e sensual da face da Terra. Daí veio o próprio diretor Lars von Trier, que ama chamar a atenção para si mesmo, reclamando de hipotéticos cortes que a obra teria sofrido e alegando que a montagem final era alheia à sua vontade. Mais marketing veio depois: numa semana saía um teaser, na outra um trailer, na outra fotos, na outra um pôster… construiu-se um castelo de expectativas em cima de Ninfomaníaca, que virou Ninfomaníaca: Volume 1, já que o material todo ficou muito extenso e, por estratégia de distribuição, foi dividido em dois filmes. E, pra muita gente, o castelo ruiu quando o filme foi visto. A expectativa, como dizem por aí, é a mãe da merda.
Ninfomaníaca, vamos dizer de uma vez, não é um filme sobre sexo. Não é, não quer ser, não tenta ser. Isso foi algo que a campanha de marketing em torno do longa tentou vender. E só, apenas isso. Se foi acertado ou não, é outra história. E sempre vale a pena lembrar que, embora produto de entretenimento, embora mercadoria que gera dinheiro (e bastante!) cinema ainda é arte – me sinto a criança gritando que o rei está nu pelo excesso de vezes que tenho que relembrar isso. E arte fala por si só. É mensagem em si mesma, antes das tantas outras que desencadeia uma vez que ganhe vida.
E o que Ninfomaníaca: Volume 1 diz por si só, independente de sua campanha de marketing ou das expectativas que todo mundo vinha nutrindo na cabeça? Ele diz que Joe (Charlotte Gainsbourg) foi encontrada ferida num beco, numa noite de inverno, por Seligman (Stellan Skarsgard). E que o homem leva a mulher para sua casa, onde esta começa a lhe contar histórias.
Histórias. É disso que Ninfomaníaca fala. Muito antes do sexo. Ninfomaníaca não é Kama Sutra, é Upanixade. Não é comunhão, é bíblia. Não é dança do ventre, são as mil e uma noites.
Antes de se afirmar ninfomaníaca, Joe afirma que é “um ser humano terrível“. Seligman duvida e, disposta a provar isso, a moça engrena uma narrativa. Uma falação pra provar que ela é, sim, essa desgraça toda que está dizendo. E não é A Casa dos Budas Ditosos, não. Na conversa do João Ubaldo Ribeiro, tinha uma fita, um documento, onde aquilo tudo estava gravado e “finalizado”. Mas von Trier quer que vejamos a coisa sendo falada, ao vivo, no improviso.
Lembra da abertura do filme? Joe caída no beco e a câmera viajando entre coisas e cantos, cada um com seu próprio som, sua própria luz, sua própria conversa. É exatamente isso que von Trier leva pra dentro do quarto de Seligman e que Joe usa para segurar sua atenção. Um anzol vira uma história sobre pesca. O som vira uma discussão sobre polifonia bachiana. Lembranças da esposa do anfitrião desencadeiam mais uma história qualquer, e por aí vai. Joe não está enfileirando experiências sexuais: ela está transando a realidade a sua volta.
E von Trier até dá uma ajudinha pra gente notar isso. Ele enche a tela de letreiro. Ele enfia conversa de física e de intervalo tonal dissonante no meio da conversa. E não, isso não é só pra ser engraçado. Nem pra cobrir de pudor a cena pervertida que, por mais que você talvez quisesse ver, não era o que ele queria mostrar. Ele está fazendo, de uma forma que nem é lá muito sutil, o outing do seu filme. Está dizendo: “isso é artificial! Isso é historinha! Esta é uma história sobre fazer histórias!“. Quem estava esperando sexo, nem notou.
Uma pena, principalmente porque o filme vai mais longe ainda em se expor como artifício narrativo. Lembram-se quando, no fim de As Aventuras de Pi (2012), os homens da empresa naval perguntam ao indiano qual das duas histórias era real, se a primeira, fantasiosa, ou a segunda, mais “real”? O indiano responde que nenhuma das duas pode ser provada e nenhuma das duas altera o que ocorreu, que escolham a melhor. Joe faz o mesmíssimo com Seligman, que ao estranhar as forçosas coincidências de sua história, é confrontado com: “Você pode escolher acreditar em mim ou não mas você não acha que aproveitaria melhor minha história se acreditasse?“. Ele prefere, então, a transa do palavreado e da imaginação do que a esterilidade de sua vida sem graça. É mais ou menos o que acontece todas as vezes que procuramos uma obra de ficção. Universo do qual Ninfomaníaca faz parte.
Será que ninguém se perturbou ou parou pra pensar que Joe pode não ser ninfomaníaca? Que ela pode estar inventando as histórias, inclusive usando elementos ao alcance dos olhos, apenas para provar ao interlocutor que é mesmo um ser humano desprezível? Será que ninguém percebeu que muitos dos termos e conceitos usados por Joe, a maioria na verdade, são introduzidos por Seligman e não por ela, que apenas aproveita o que lhe é dado e transforma em fala? Ninguém notou que é ele o primeiro a falar em ninfomaníaca, quando Joe ainda falava de brincadeiras de corda? Ninguém leu O Caderno Rosa de Lori Lamby, não?
A divisão do filme em duas partes realmente é lamentável: quebrou a obra em duas e distribuiu no tempo uma experiência que, até onde o primeiro volume permite ver, seria mais íntegra e surpreendente se vista de uma vez só. Não me parece que o Volume 2 vai ser melhor porque “vai ter sexo de verdade”. Mas sim porque vai brochar de vez esse bando de tarados que foi ao cinema com uma ideia muito quadradinha e pronta do que iam encontrar. Uma vontade certeira de ver a pica X e a xoxota y em alta definição. O Volume 2 vai ter ainda mais falação. No sentido de falo.
Se o marketing estava errado, se Lars von Trier é metido a estrela, pouco importa. Julgando apenas pelo que a obra conta, tem muito mais em Ninfomaníaca do que o pornô all-stars que vinham prometendo. Ainda bem. Depois da Internet, do Tinder e tudo o mais, quem vai ao cinema querendo ver só sacanagem tem mais é que brochar mesmo…