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Não é de hoje que teorias apocalípticas sinalizam o fim do jornalismo. A chegada da internet, a guinada da atenção do leitor para os meios virtuais, a consequente e gradativa perda da adesão massificada por parte dos veículos impressos, criaram uma crise aparentemente permanente, da qual não sabemos como nos desvencilhar. Mas o jornalismo segue aguerrido. São constantes as notícias de redações enxugadas, postos de trabalho sumindo em prol do multitarefa, ou seja, daquele que chupa cana, assovia e faz matéria ao mesmo tempo. Portanto, o próprio meio passa por uma instabilidade que vem de muitos anos, quem sabe de um par de décadas. Quando restringimos o foco ao jornalismo cultural, ainda mais especificamente ao cinematográfico, as coisas ganham matizes próprios. Esse recrudescimento mencionado atinge os cadernos especializados de jornais e revistas, cada vez menores, com bem-vindas exceções. E nesse panorama a internet aparece como uma excepcional janela, um ambiente notável de trocas.

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O presente artigo poderia ser sobre inúmeros aspectos do jornalismo cultural contemporâneo, mas me deterei apenas naquilo que me parece urgente, a necessidade de respeitar novamente a força de uma atividade tão importante socialmente, ou seja, de voltar a fazer jornalismo e não levar-se pelo canto melodioso das sereias do marketing. É preciso não incorrer em camaradagem oportunista para obter vantagens competitivas num mercado cada vez mais restrito. Tal reflexão surgiu pela resposta acintosa à nossa notícia acerca dos impropérios no 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – com organizador batendo boca com a plateia e curador desempenhando a função de crítico. Não foram poucos os retornos que tivemos, positivos e negativos, pura a simplesmente por zelarmos diligentemente por nossa missão. E isso me levou a pensar, como, às vezes, as coberturas de eventos ou de qualquer dinâmica desse universo em particular se aproximam perigosamente de ser meras peças de divulgação.

Entende-se que o jornalista precisa ser alguém atento aos fatos, eticamente comprometido com a integralidade deles, doa a quem doer. Lidamos com matéria pública. Todavia, há toda uma estrutura pressionando esse profissional, e no cinema isso adquire contornos bem singulares. Não são raros os casos, por exemplo, de críticos que “aliviam” em seus textos e/ou vídeos simplesmente porque não querem perder a predileção de assessorias e dos grandes estúdios, por exemplo. Não são igualmente excepcionais, infelizmente, os repórteres que fazem ouvido de mercador ou vista grossa para absurdos em eventos pelo simples temor de não serem convidados para cobri-los no ano seguinte. Não estou aqui falando de uma pressão externa direta, mas da postura do jornalista, essa autopreservação canhestra de sua colocação dentro de um mercado. Mas, é bom lembrar-se, nosso único compromisso inalienável é com os leitores. Nossa idoneidade não pode ser “barganhável”. Nosso maior ativo é a consistência de um trabalho sério.

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Então, é preciso, no meio cinematográfico, voltar a praticar o bom e velho jornalismo. Isso não significa lançar luz apenas às fragilidades. Tampouco se trata de camuflar deficiências com perspectivas distorcidas ou eufemismos igualmente torpes. Um crítico de cinema não pode medir suas palavras, senão pelas réguas do bom senso e do profissionalismo, sinalizando aquilo que lhe parece essencial para o público, oferecendo-lhe uma análise sincera, obviamente nem sempre assertiva ou densa, mas sincera. Se um festival, como o 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, teve falhas, é nosso dever aponta-las, contextualiza-las e problematiza-las. Num momento absolutamente crítico à atividade, inclusive com esferas governamentais colocando em xeque a idoneidade de homens e mulheres que encaram jornadas de trabalho e condições muitas vezes insalubres para fazer valer sua vocação, é necessário que voltemos a fazer jornalismo, não nos preocupando com eventuais privilégios, mimos e simpatias. As boas assessorias sabem valorizar os trabalhos de qualidade; as distribuidoras preocupadas com o cinema, não apenas com o lucro, superam as críticas negativas, desde que a entendam embasadas e consistentes; os festivais geridos por gente de cinema encaram com maturidade a verdade. Garanto. O que não podemos é virar engrenagem de marketing.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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