Quando a política vai ao cinema, geralmente é para discutir suas consequências. Está aí Lincoln (2012), que não deixa mentir: mais do que contar a história de um emblemático presidente norte-americano, o filme é uma fábula moral sobre a necessidade da mudança, da razão e da ousadia para o andamento da história em direção ao que se possa considerar justo ou, no mínimo, esclarecido. Esclarecimento, aliás, é uma palavra importante neste caso: possui correspondência direta com “Iluminismo” (sua tradução para o inglês, enlightenment, parece ainda mais adequada, já que evoca “luz” – light). É justamente sobre este conceito e suas implicações que se debruça O Amante da Rainha (2012).
O filme, dirigido por Nikolaj Arcel, conta a história verídica da Rainha Caroline Mathilde (Alicia Vikander). Trazida da corte inglesa para desposar o rei Christian VII (Mikkel Boe Følsgaard, transtornado, insano, tragicômico), ela se depara com um homem infantilizado e perturbado. Nesse contexto, um médico alemão é trazido para ajudá-lo. Dr. Struensee (Mads Mikkelsen) se torna, então, o amante do título, num triângulo amoroso que lembra inclusive aquele entre Arthur, Guinevére e Lancelot (explicitamente citado).
Alguém provavelmente já deve estar se perguntando: mas o filme não era sobre política? E é. Assim como também é sobre o caso de adultério e o envolvimento entre seus personagens. Nesse sentido, o título original, En kongelig affære (algo como “um caso real”), se presta muitíssimo melhor, já que affære (affair, em inglês) serve tanto para designar tratativas e assuntos oficiais como um caso amoroso, geralmente extraconjugal. E é aí que vive a ambiguidade maior e mais inspiradora de O Amante da Rainha: o filme mostra que, onde falta a razão, governam os sentimentos. Os bons e os ruins.
Historicamente, o século XVIII viu surgir o Iluminismo, especialmente na França e na Inglaterra. Esta corrente, que culminaria na Revolução Científica (e mais tarde, na Revolução Industrial) defendia o uso da razão e retomava a filosofia humanista, opondo-se contra Estados Nacionais absolutistas monárquicos e fortemente influenciados pela religião, caso da Dinamarca. O país, como o filme deixa claro, vivia em condições medievais, com uma população pobre, adoentada e mal educada. O que ocorre é que, mais do que ser amante da rainha, Dr. Struensee também era estudioso das ideias iluministas. E foi assim que, utilizando de sua influência sobre a família real, conseguiu (direta ou indiretamente) implantar mudanças importantíssimas no país, precursoras inclusive do atual desenvolvimento observado por lá.
Assistir ao filme é se emaranhar nessa história e notar que, num espaço monárquico, em que relações familiares, de gosto e de afinidade parecem se sobrepor à política ou ao bem comum da população, amar pode se tornar, sim, um ato político (algo que agradaria Foucault e seus seguidores). E a direção se esmera em sublinhar o fato com artifícios inteligentes e certeiros. É interessante, por exemplo, o uso da luz e das janelas em momentos que representam, justamente, o esclarecimento ou iluminação de alguns personagens. A transição física de cada um deles – acompanhada de belos figurinos de época – também é aparente, especialmente na protagonista que, sem lançar mão de recursos extremos de maquiagem, vai de menina a mulher nas pouco mais de duas horas de projeção. Finalmente, as cenas que mostram eventos sociais, como jantares e bailes, se tornam verdadeiros estudos sociológicos, com personagens desempenhando papeis arquetípicos e deixando claras as relações entre instituições como Estado, igreja, nobreza e povo. Mérito dos roteiristas, Rasmus Heisterberg e o diretor, adaptando um livro de Bodil Steensen-Leth.
Para quem se incomodar com a “pessoalidade” das relações políticas em O Amante da Rainha (tanto para o “bem” como para o “mal”) e eventualmente vê-las refletidas nos dias de hoje, cabe lembrar que o Iluminismo deixava claro que a única saída para essa contaminação era justamente a racionalidade. Racionalidade, no caso, estaria alicerçada em pilares como o estado laico, a transparência e a democracia, valores que, ainda hoje, são postos em xeque.
E é aí que o filme atinge seu trunfo maior: mais do que dramatizar de forma competente um evento histórico, ele nos dá uma lição sobre política que respinga até os dias de hoje. Indicação mais do que justificada ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o longa provavelmente seria ainda mais aclamado se fosse rodado em inglês. Ainda bem que não foi: apenas um país capaz de contar sua história com as próprias palavras poderia produzir um filme –e uma história – como O Amante da Rainha.
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