Não é de hoje que uma batalha (nem sempre) surda tem sido travada nas entranhas da indústria cinematográfica. De um lado, exibidores tensos com a possibilidade de perda de público (e faturamento) em um negócio estabelecido há décadas; do outro, o streaming ganhando cada vez mais fôlego graças à adoção desenfreada mundo afora, em parte devido à facilidade mas também graças aos preços abusivos dos ingressos. Por mais que a matéria-prima de ambos seja (quase) a mesma, a forma de consumo é crucial e pode determinar não propriamente o que você verá, mas como verá. Às vezes, sem nem ter opção de escolha.
Desde a ascensão da Netflix, muito se discute se o streaming irá acabar com a experiência de ir ao cinema. Isto não acontecerá, o que não significa que tal modelo não sofra mudanças, já em andamento. Com o objetivo de enfrentar a comodidade do streaming, a indústria tem investido firme na proposta do cinema como experiência – e dá-lhe IMAX, sala VIP, 3D e outros penduricalhos. Para dar suporte a tamanha tecnologia, passou-se a apostar cada vez mais em outra vertente: a do cinema de imersão, capaz de capturar a atenção até mesmo de diretores badalados. Que o digam Alfonso Cuarón e seu Gravidade (2013), Christopher Nolan com Dunkirk (2017) e, agora, Sam Mendes e 1917 (2019).
É preciso ressaltar que 1917 não é um filme ruim. De um exibicionismo visual magnético, trata-se de um doutorado para Mendes & equipe no quesito domínio técnico sobre como contar uma história, mesmo que para tanto seja necessária uma boa dose de manipulação. Mas nada disso importa, ao menos não para esta análise. O que deve ser ressaltado é que, em meio à exaltação de O Irlandês (2019) como um dos melhores filmes de Martin Scorsese, ao estrondoso sucesso (de público e crítica) de Coringa (2019) e à longa lista de fãs de Quentin Tarantino, nenhum deles tem dominado a temporada de premiações. Tal proeza cabe a 1917, que já tem o Globo de Ouro e os prêmios anuais dos sindicatos dos produtores e de diretores na prateleira, com espaço reservado para uma certa estatueta dourada.
Tão interessante quanto participar dos inevitáveis bolões sobre quem ganhará o Oscar é entender a engenharia que escolhe vencedores e vencidos. Às vezes não é propriamente um filme que ganha, mas outro que perde – como aconteceu quando Guerra ao Terror (2008) foi incensado para destronar o furacão Avatar (2009) ou mesmo quando os haters de La La Land (2016) derrubaram suas chances na categoria de melhor filme, cuja análise de voto é completamente diferente de todas as demais no Oscar. Pois, pelo segundo ano consecutivo, a Netflix vem com força na temporada de premiações. E, pelo segundo ano, precisa lidar com este movimento invisível que “cria” um candidato para derrotá-la.
Se a vitória de Green Book (2018) sobre Roma (2018) soou absurda, seja pelos méritos do filme de Cuarón ou pela visão equivocada da ferida racial norte-americana no filme premiado, eleger 1917 a tal posto é coerente com a proposta estética e narrativa estabelecida por Mendes. Mais ainda: este é, também, um típico exemplar do cinema de imersão, o mesmo que se deseja para combater o inimigo que, cada vez mais, ganha espaço. Ou seja, premiá-lo é também uma forma de divulgação do perfil desejado por toda uma indústria, ansiosa (e nervosa) em mostrar que não só está viva, mas também pulsante. Quer melhor marketing que o selo eterno de “vencedor do Oscar”?
O Oscar 2020 é apenas mais um campo de batalha na guerra entre cinema e streaming, como já foram o Festival de Cannes, a janela entre exibição e online no lançamento dos filmes originais da Netflix ou mesmo sua entrada como membro na prestigiada Motion Picture Association of America (MPAA). Como se pode ver, há bem mais interesses em jogo além da mera e simples escolha de qual será o melhor filme do ano. De novo.