O cineasta iraniano Mohsen Makhmalbaf deve ter deixado o Brasil com um sopro de esperança. Ele esteve no país em função de alguns compromissos “oficiais”, como o ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, e a Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo. Mas, na bagagem, ele tinha outra missão, infinitamente mais importante: sensibilizar a opinião pública, e sobretudo o governo brasileiro, sobre a violação de direitos humanos e o cerceamento da liberdade no Irã.
O que faz dele uma celebridade, além da aclamada filmografia, é uma bandeira que com certeza ninguém gosta de carregar. Makhmalbaf vive exilado, pois em seu país é um inimigo do regime – simplesmente por ser um cineasta. O vi num bate-papo com estudantes de cinema na PUC-RS.
Mohsen Makhmalbaf explica por que o cinema de seu país recebeu mais de dois mil prêmios nos últimos 30 anos (cálculo dele): é um cinema que espelha a realidade, que escala como atores pessoas sem treinamento, feito com orçamentos minúsculos e equipes menores ainda. “A câmera é uma arma que mata o ator”, ele teoriza, “procuramos reduzir o tamanho da equipe e minimizar a presença da câmera, para não intimidá-lo”.
Makhmalbaf encerrou a palestra com um exercício prático – não de cinema, mas de participação política. Pediu que homens e mulheres da platéia sentassem separados, criando uma audiência segregada. É contra isso, demonstrou Makhmalbaf, que lutam os jovens iranianos.
O Irã nascido da Revolução Islâmica de 1979 que derrubou o Xá é administrado por uma combinação entre governo e religião. Hoje é uma ditadura com um “problema”… Os iranianos têm, em média, entre 26 e 27 anos; 48.5% da população têm acesso à Internet, o que representa um dos mais altos índices da região. Foi essa população jovem, bem instruída, “conectada” que liderou o movimento
As manifestações começaram no dia 13 de junho, logo após o anúncio da vitória de Mahmoud Ahmadinejad, e aumentaram nas semanas seguintes – assim como a repressão e a violência da polícia e das forças paramilitares iranianas. O Movimento Verde ficou marcado como a “Revolução do Twitter” ou o berço do ciberativismo. Além do poder de mobilização dentro do Irã, as mídias sociais da Internet (Twitter, Facebook, blogs) deram visibilidade ao movimento. O “jornalismo cidadão” mostrou para o mundo o que ocorria nas principais cidades do país, e talvez o melhor exemplo seja o de Neda Agha-Soltan que, involuntariamente, foi transformada em um ícone. Imagens da jovem baleada, agonizando numa rua de Teerã foram vistas por milhões de pessoas pelo You Tube. O documentário “For Neda”, disponível na Internet, relembra esses eventos.
O caso da atriz Marzieh Vafamehr, presa por seu papel no filme “Meu Irã à Venda” (banido no Irã), repercutiu no mundo inteiro por causa da brutalidade da sentença: 90 chibatadas. Segundo a Anistia Internacional, Vafamehr teria sido libertada e sua sentença revogada.
O relatório da Organização das Nações Unidas The situation of Human Rights in the Islamic Republic of Iran, publicado em setembro de 2011, denuncia tortura, detenções e execuções arbritárias. As infames prisões iranianas estariam tomadas de jovens acusados de cometer “moharebeh”, que, segundo a lei islâmic,a é um crime contra o governo ou a sociedade. Um capítulo do relatório é dedicado a artistas perseguidos pelo regime, e entre eles está o premiado diretor Jafar Panahi.
É de Panahi o belíssimo e singelo Fora do Jogo (Offside, de 2006), que narra a saga de meninas iranianas tentando ver uma partida de futebol num estádio. Offside, em inglês, se refere à regra futebolística do impedimento. Panahi está impedido de sair do país, durante 20 anos. Está impedido de trabalhar como cineasta, durante 20 anos. Foi condenado a seis anos de prisão. A acusação: agir contra a segurança nacional e fazer propaganda contra o regime. Ele foi detido em julho de 2009 numa cerimônia em homenagem a manifestantes mortos durante o Movimento Verde, e desde então vive entre a prisão e a casa, tendo sido libertado em certas ocasiões por pressão da comunidade artística internacional.
São as vozes desses iranianos, caladas à força, que Mohsen Makhmalbaf fez ecoar no Brasil. Aqui ele encontrou a solidariedade dos colegas de ofício. Em São Paulo foi homenageado com o Prêmio Humanidade Leon Cakoff (criador da Mostra Internacional, falecido esse ano). Mais de vinte profissionais assinaram um manifesto pedindo que o governo brasileiro defenda junto à ONU o direito à liberdade de expressão no Irã, e peça a imediata libertação de cineastas, jornalistas, religiosos e professores universitários.
Apelar por uma posição firme do governo brasileiro faz todo o sentido. O Brasil se transformou em potência emergente encantando governantes e mercados com sua política externa independente, multilateral, não-intervencionista. No entanto, ainda peca em um item que tanto preza – a defesa dos direitos humanos. É uma seara em que o país, em diversas ocasiões, tem mostrado pesos e medidas diferentes conforme o freguês.
O Brasil que se orgulha de ser convocado para usar seu poder diplomático na mediação de negociações com o Irã não pode mais fazer vista grossa à máquina repressora de Ahmadinejad. Esse é um item da agenda internacional que não pode ser ideologizado (repetindo Mohsen Makhmalbaf, não tem como explicar por que Lula abraçava o presidente iraniano como se ele fosse um outro líder de esquerda). Em março, pela primeira vez em dez anos, o Brasil votou contra o Irã na ONU ao aprovar a investigação que deu origem ao relatório sobre a situação dos direitos humanos no país. Que seja o sinal de uma mudança, benvinda, da administração de Dilma Rousseff.
Para saber mais, visite o blog de Jorge Furtado, que articulou o movimento em apoio aos cineastas iranianos, e o site iranhumanrights.org, da Campanha Internacional pelos Direitos Humanos no Irã.