Em sua 40ª edição, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo escolheu como grande homenageado um nome cuja obra dialoga diretamente com o conturbado cenário sociopolítico brasileiro da atualidade, o italiano Marco Bellocchio, considerado por muitos o maior cineasta vivo de seu país. Desde o impacto causado por seu trabalho de estreia, De Punhos Cerrados (1965), Bellocchio sempre esteve associado a um tipo de cinema contestador, algo que hoje, aos 76 anos, o próprio reavalia, acreditando ter adentrado uma nova fase criativa desde o início dos anos 2000, mais intimista e menos engajada. De passagem pela capital paulista a convite do evento, que apresenta uma retrospectiva de sua carreira, o diretor participou de uma coletiva de imprensa na última segunda-feira (24/10), na qual falou aos jornalistas sobre o passado, música, cinema brasileiro e, como não poderia deixar de ser, sobre política.
Bellocchio, que na noite anterior havia apresentado seu mais recente longa, Belos Sonhos (2016) em uma sessão lotada no CineSESC, seguida da cerimônia que lhe concedeu o Prêmio Leon Cakoff, iniciou a conversa falando sobre a recepção da crítica e do público italiano a seus filmes. Relembrando o panorama local nos anos 60 e 70, quando lançou seus primeiros longas, afirmou que, apesar de haver censura, sempre teve liberdade para realizar seu trabalho e que as reações a seu cinema sempre foram as mais diversas. Bellocchio fez questão de destacar especificamente o caso envolvendo o cultuado Diabo no Corpo (1986), que gerou grande polêmica não só por seu conteúdo erótico explícito, mas também por sua adesão aos preceitos psicanalíticos de Massimo Fagioli, com quem também colaborou em O Processo do Desejo (1991). “Foi um escândalo na Itália e fui muito julgado por isso”, afirmou.
Indagado sobre o sentido do cinema como ferramenta para a criação de utopias, o italiano novamente retornou aos primórdios de sua trajetória, dizendo que seus filmes refletiam o contexto histórico no qual estavam inseridos, e que por isso carregavam uma grande desilusão em relação ao governo, logo, o conceito utópico era indissociável. Apesar disso, Bellocchio diz não se considerar um cineasta político, acreditando que conseguiu depurar seu estilo a ponto de extrair dos elementos políticos o essencial para enriquecer histórias que tratam de pessoas, citando filmes como Vincere (2009) e Bom Dia, Noite (2003) – este último foi o que inspirou o diretor na criação da ilustração que estampa o cartaz desta edição da Mostra SP – para exemplificar essa evolução estilística. “’Vincere’ não é um filme sobre o fascismo, mas sim sobre essa mulher, a amante de Mussolini, e sua luta. E era isso que me interessava”, conclui.
Mesmo parecendo querer tratar de outros temas, Bellocchio não fugiu de novas questões de cunho político, como ao ser indagado sobre a Operação Mãos Limpas, ação anticorrupção ocorrida nos anos 90, que acarretou a prisão de muitos poderosos e o desmoronamento de instituições italianas. Sobre o assunto, Bellocchio afirmou que apesar de a operação ter tido resultados visíveis na época, hoje o país passa por um novo momento de tensão, gerando o surgimento de partidos como o Movimento 5 Estrelas. Para ele, fatos como esses demonstram o fatalismo da opinião pública, acrescentando que “Isso mostra que os cidadãos não se reconhecem mais nas instituições, desprezam a política e não acreditam mais no voto”.
A religião, em especial o catolicismo, outro tema recorrente em seus filmes, também esteve na pauta da coletiva. O diretor acredita que, por ter tido uma formação católica na infância, a influência da religião surge naturalmente: “Um artista fala sobre aquilo que conhece, aquilo que já viveu. Por isso, é inevitável que o catolicismo tenha um papel importante em muitos de meus filmes”. Bellocchio cita o Brasil e o crescente número de igrejas evangélicas para exemplificar a crise da Igreja Católica, lembrando também sua desilusão pessoal em relação à religião, tendo visto a falsidade na prática da mesma. Já na parte final do encontro, o diretor falou um pouco mais sobre seu processo criativo, em especial sobre o papel da trilha sonora em seus trabalhos. “A música é como uma terceira imagem”, declara, antes de rememorar sua parceria com Ennio Morricone em A China Está Perto (1967), quando a inserção da música era a última etapa do processo de produção. Bellocchio diz que os anos de experiência o fizeram preferir ter a música antes do início das filmagens, como o faz hoje ao lado do compositor Carlo Crivelli, responsável pelas trilhas de seus filmes desde Em Nome do Diabo (1988).
Ainda tratando de música, ele falou sobre a marcante versão feita por um coral para Nothing Else Matters, do Metallica, que surge de modo surpreendente em um segmento de época de Sangue do Meu Sangue (2015), confessando que a utilização da canção lhe foi sugerida por um membro da equipe técnica. Por fim, ainda houve tempo para que Bellocchio falasse sobre sua ligação com o Brasil através da amizade que manteve com cineastas como Glauber Rocha e Paulo César Saraceni, quando estes foram estudar na Itália. Para ele, a grande força do Cinema Novo brasileiro não era necessariamente a crítica política, mas sim seu experimentalismo, a originalidade e a beleza da transgressão dos modelos cinematográficos clássicos. Sempre simpático e bem-humorado, Bellocchio demonstrou um real entusiasmo em todas as suas respostas, refletindo sua vitalidade como um artista que segue se transformando e encantando o público com seu cinema sempre poderoso e imprevisível, cuja essência o próprio define com perfeição: “Ao realizar um filme eu não parto da mensagem, parto da imagem. Leio uma história e busco as imagens que posso extrair dela. E nessas imagens estão as minhas ideias. Sigo a minha inspiração e corro o risco de expor a minha consciência”.