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A história é mais do que conhecida: a moça casada, mãe de família, que se envolve com outro homem, geralmente mais novo e sedutor. A essência da trama remonta à Flaubert, com sua Madame Bovary, que ecoou por todo o mundo literário da segunda metade do século XIX, influenciando-o – felizmente, na época, a brigada do plágio, que hoje esbraveja contra As Aventuras de Pi (2012) no Facebook, não atormentava escritores por reaproveitarem ideias uns dos outros, como sempre ocorreu na literatura. Assim, na Rússia, Tolstói recriou a trama de adultério com as cores de seu país, incorporando diversos elementos de comentário político e social. Nascia Anna Karenina.

Corta para o século XXI. Joe Wright se afirma como um diretor com claro talento para adaptações literárias. Reconhecido pelo grande público por suas transposições para a tela de Desejo e Reparação (2007) e, principalmente, de Orgulho & Preconceito (2005) – este último o romance de Jane Austen exaustivamente adaptado para TV e cinema – Wright sempre foi contido, discreto em seu modo de dirigir. Suas adaptações eram literais em relação ao material original e a direção era naturalista, quase invisível, como se quisesse deixar todo o espaço possível para a trama apresentada. Sempre, até Anna Karenina.

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Wright parece ter se dado conta de que, nesse caso, contar a história era o “de menos”. A maioria do público já está familiarizado com ela, se não pela obra original, por toda uma tradição que moldou o melodrama, o folhetim e até a telenovela. E, num arroubo de talento e maestria técnica, fez com o cinema o que Tolstói logrou com a literatura: deu à trama as cores de um país e a elevou a um horizonte mítico, surreal, onde, livre do literal e do naturalismo, se converte em seu objetivo imaginado: uma alegoria da sociedade.

Para tanto, Wright contou com a ajuda de Sarah Greenwood, desenhista de produção que trabalha com ele já há longa data. Anna Karenina é a merecidíssima quarta indicação de Greenwood ao Oscar de Desenho de Produção (antiga “Direção de Arte”). A ideia foi ousada: fazer com que toda a trama transcorresse num teatro, com palco, plateia, camarotes, coxias, varas de iluminação, porões. Usando brinquedos, objetos, biombos e cenários pintados, o teatro se transforma em salões de baile, em casas, quartos, restaurantes. E, quando se imagina que o repertório de “locações” está esgotado, a parede se derruba para revelar toda a infinidade branca da tundra russa. Até o trem, extremamente simbólico na história e responsável por transportar os personagens entre São Petersburgo e Moscou, vira um ferrorama. Algo que faz lembrar Querelle (1982) e, para o público brasileiro, a minissérie Capitu (2008), dirigida por Luiz Fernando Carvalho.

A ideia aqui parece ser não apenas formal, ou seja, “embelezar” a história, mas também levar o espectador a tomar consciência do aspecto cenográfico daquilo que assiste. Afinal, a artificialidade daqueles cenários e relações não seriam também um mimetismo da sociedade que retratam? O luxo exacerbado da Rússia imperial não seria, talvez, apenas um belo cenário, onde pessoas desfilavam por trás de máscaras, como atores? Curioso notar, nesse sentido, que a única subtrama que ocorre fora do teatro é aquela sobre o amor possível na visão de Tolstói, cuja transcendência se dá por meio do trabalho (uma ideia bastante ligada ao comunismo, que derrubaria a Rússia imperial anos mais tarde).

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O cuidado com cada detalhe, a presença marcante do imaginário russo (bonecas matrioshka, cubinhos de madeira, casas de bonecas) e o luxo da produção dão ares fantásticos ao longa e só vêm a contribuir ainda mais para a construção de uma atmosfera cenográfica, alegórica, operística. O figurino, este merecidamente reconhecido com o Oscar, é saturado nas cores e formas, sublinhando características essenciais a cada personagem, seja o Estado, o exército, o trabalho ou o amor. A trilha sonora é grandiosíssima, sinfônica, com valsas e polcas que assumem uma função quase narrativa em passagens como a do baile e coroam a terceira indicação do filme.

A última indicação, mais uma vez merecida, é à brilhante fotografia de Seamus McGarvey. Mais do que enquadrar e iluminar tudo isso com o esplendor que merece, a câmera dança, corre, desliza, esgueira e acompanha os personagens enquanto o mundo a sua volta, literalmente, se acaba e se reconstrói. Considerando a presença real de contrarregras e assistentes de “palco”, que montam e remontam ambientações enquanto o filme transcorre, é a fotografia quem se movimenta com eles para, se não manter a ilusão, tornar óbvio, mas não menos belo, seu desvelo.

É claro, no entanto, que o filme não se resume ao ambiente que cria e a forma como o explora. Habitando este mundo, existe um elenco afinado e que seria perfeitamente digno de constar entre os indicados a diversos prêmios. Keira Knightley é correta em sua representação de Anna, fazendo lembrar inclusive outros de seus papéis. Mas é nas outras duas pontas do triângulo que residem as maiores surpresas: Jude Law, como Karenin, o marido de Anna, transparece uma angústia silenciosa, uma raiva reprimida e uma ética inabalável. Escondido por trás de uma densa barba, seu sorriso é algo que não chegamos a conhecer, embora outras emoções escoem por seu olhar, sempre plácido. Do outro lado, Aaron Taylor-Johnson, como o conde Vronksy, faz uma interpretação virtuosística, a melhor do filme e de toda a sua carreira. Com aparência angelical e olhar demoníaco, seu personagem seduz a câmera, o elenco, os personagens e os espectadores, sendo não apenas o catalisador do conflito principal, mas também sua personificação. Por fim, os fãs da saga Harry Potter no cinema vão gostar de ver Domhnall Gleeson (um dos Weasley) como Levin, o “elemento proletário” da trama, quase um retrato do amor verdadeiro.

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Tudo isso, nas mãos de um diretor que soube usar recursos estéticos inventivos para, mais do que recontar uma história, recriá-la, resulta numa verdadeira joia cinematográfica. A única ressalva talvez resida no fato de que, tamanha é a lapidação desta joia, que, algumas vezes, sua profundidade ou transparência emocional sejam levemente comprometidas. No entanto, ninguém pode culpar Wright por, como Anna Karenina, buscar a perfeição em seus objetivos. Até às últimas consequências…

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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