Nas três primeiras partes desta matéria especial sobre os rumos do cinema brasileiro em 2021, o Papo de Cinema se dedicou às salas de cinema, ao streaming e aos festivais de cinema. No entanto, a discussão não poderia se completar sem um questionamento sobre as políticas públicas no Brasil. O atual governo jamais escondeu sua aversão pela classe artística brasileira, mas que interferências diretas efetuou no financiamento, estímulo e fiscalização do audiovisual? De que maneira a Ancine, agência criada para ter relativa independência do governo, sofre com o contexto político-econômico? Face à lentidão na liberação de verbas e lançamento de novos editais, devemos criticar a Ancine enquanto instituição, ou estaríamos contribuindo ao desmonte das conquistas obtidas até agora?
Para compreender estas questões complexas, conversamos com três pessoas que acompanham de perto a evolução deste cenário: Débora Ivanov, diretora da Ancine entre os anos de 2015 e 2019, e antes disso, membro titular do comitê gestor do Fundo Setorial do Audiovisual; Luciana Rodrigues, doutora em Processos Audiovisuais pela USP, professora de Legislação Cinematográfica na FAAP, advogada e parecerista externa na Ancine, e Jotabê Medeiros, jornalista cultural desde 1986, que assina na Carta Capital a coluna Farofafá, dedicada exclusivamente às políticas culturais com foco em cinema.
Paralisação das atividades?
As entrevistas do Papo de Cinema com diretores, produtores e atores têm transparecido a impressão de que o financiamento está completamente paralisado por parte da Ancine na atual gestão, seja por escolha ideológica, seja por dificuldades organizacionais. A agência alegou falta de dinheiro para cumprir com a contratação de projetos pré-aprovados anteriormente, no entanto, ainda existe uma verba considerável represada pela diretoria. Débora Ivanov fornece seu ponto de vista:
“Sobre a contratação dos projetos, não é uma paralisação total. Os projetos tem sido analisados e contratados, mas em ritmo muito lento. Quanto aos novos editais, de fato não houve nenhum edital em 2020, e a gente espera que esse quadro mude em 2021. No ano passado, para a gente ter uma ideia do volume de contratações, tenho a informação de que foram contratados 500 milhões de reais. A grande parte foi de empréstimos, cerca de 300 milhões de reais, e o restante corresponde a editais passados. Ainda tem muita coisa represada, e a gente aguarda um planejamento de curto prazo para que se efetivem os contratos passados. Além disso, espera-se que esse ano saiam os editais. De qualquer forma, este freio de mão e a falta dos editais sem dúvida provoca uma quebradeira geral no mercado. Muitas empresas estão falindo, muitos projetos estão paralisados. As pessoas estão angustiadas, porque se os projetos não andam, não são gerados postos de trabalho. Milhares de famílias que dependem da nossa profissão são afetadas por isso”.
Este freio de mão e a falta dos editais sem dúvida provoca uma quebradeira
geral no mercado. Muitas empresas estão falindo.
“Estou atuando como parecerista externa da Ancine, e desde o final de 2018, não recebo nenhum projeto para analisar”, aponta Luciana Rodrigues. “Esse é um fator interessante. A gente já consegue ver uma situação de quebradeira, mas ainda não temos noção do quão profunda é essa crise. Em 2019 e 2020, vimos diversos filmes brasileiros em festivais, tendo ótimo reconhecimento. Mas eram filmes que estavam sendo feitos há anos, porque o processo é muito longo. Com a situação da Covid e com o represamento, ainda vamos sentir esta crise. Por outro lado, existem as plataformas de streaming, para o bem e para o mal, com produções mais aceleradas. Ainda não temos plena noção dessa crise, porque muitas produtoras ainda trabalham hoje com os recursos que restaram das épocas anteriores”.
Jotabê Medeiros efetua uma leitura mais alarmante: “O financiamento está paralisado por uma série de fatores. Neste momento, por motivos de ordem ideológica, mas antes, pela própria incapacidade da Ancine de se postar à frente dos novos desafios, dos marcos regulatórios. Com a entrada desse novo governo, a situação ficou pior, porque o governo não tem compreensão alguma do que o audiovisual representa. Além disso, o governo vê fantasmas em todos os lugares, enxergando no cinema o inimigo a ser combatido. O contingenciamento efetuado atualmente é uma das coisas mais bizarras que já vi na minha vida, desde que cubro políticas culturais. Eu nunca tinha visto nada parecido com tamanho grau de cinismo”.
A judicialização das políticas públicas
Uma das discussões mais delicadas neste processo diz respeito ao que Rodrigues chamou de “judicialização” do processo de financiamento do audiovisual pela Ancine. Na prática, ela se refere às interferências externas do Tribunal de Contas da União, do Ministério Público Federal e das produtoras que moveram ações judiciais na tentativa de obter as verbas pré-aprovadas.
“Toda a sociedade brasileira está passando por uma judicialização. Enquanto pessoa egressa da área do direito, isso me angustia, porque algumas coisas não deveriam ser judicializadas. Uma parte das produtoras que se sentiram prejudicadas acabou entrando com ações ou estimulando que o Ministério Público fizesse isso. Esse é um caminho bastante perigoso. O que a gente deveria estar vendo é uma valorização desse setor estratégico para o país. Quando a gente se depara com a judicialização das relações, todos os setores se colocam em posições vulneráveis”.
Medeiros, por sua vez, apoia a abertura de processos jurídicos: “Mesmo que a ação jurídica não seja a mais adequada para tentar desenroscar isso, ela pelo menos atribui responsabilidades. A Ancine tem uma diretoria, e essa diretoria tem responsabilidades por lidar com dinheiro público. Ela precisa prestar conta de suas ações. As ações jurídicas têm o fundamento básico da reivindicação de direitos. O dinheiro parado na Ancine pertence ao mercado audiovisual pela constituição. Por isso, as produtoras não estão fazendo nada mais do que reivindicar o que é delas. Esse dinheiro foi destinado pela sociedade brasileira, em lei pactuada no Congresso eleito e assinada pelo presidente eleito. O que acontece, na minha opinião de analista, é que muitas pessoas ficam pisando em ovos, pensando que podem ser retaliadas por reivindicarem seus direitos na justiça. Essa mentalidade de botar panos quentes em todas as questões faz com que a gente acabe abaixando a cabeça a certos arbítrios e autoritarismos”.
Só no período em que eu estive na Ancine, passei por três presidentes
da república, cinco ministros diferentes e pela troca de quatro diretores.
Tendo atuado na diretoria, e vivenciado as inúmeras pressões sofridas pela Ancine, tanto do governo quanto do setor, Ivanov prefere contextualizar a questão antes de partir às soluções. “A grande crise que a Ancine enfrenta hoje é anterior a esse governo”, ela pondera. “Só no período em que eu estive na Ancine, e eu saí faz quase um ano e meio, passei por três presidentes da república, cinco ministros diferentes e pela troca de quatro diretores dentro da agência. Isso gera uma instabilidade muito grande. Apesar de as agências terem sido criadas para terem autonomia, toda a verba da Ancine era pré-aprovada pelo Ministério da Cultura. O Fundo Setorial, que é a principal alavanca de desenvolvimento econômico do setor, é gerido pelo ministro. Não se pode falar de uma autonomia. Essas trocas constantes geram um caos muito grande. A ação do Tribunal de Contas da União, quando decide que o enfrentamento do passivo pela Ancine estava completamente errado, deflagra a crise mais profunda que estamos vivendo hoje”.
De acordo com ela, a Ancine adotou medidas práticas para acelerar o processo de análise de prestação de contas, sabotadas em seguida pelo Tribunal de Contas. “O TCU simplesmente rejeitou um decreto presidencial de 2014, onde a presidente Dilma aprovou uma metodologia diferente de administração de contas, exatamente para enfrentar o passivo. É bom lembrar que a Ancine nasce com um passivo. Quando ela surge, não tem nenhum servidor, cadeira nem computador, mas ela recebe um caminhão com 1.408 projetos de passivo. O quadro de funcionários, previsto na lei de 2001, só se torna completo em 2014. Esse enfrentamento é um assunto antigo, e a Ancine, vendo que as leis ampliariam muito a produção, levando a um problema de gestão, propõe o Ancine+Simples. Todos os projetos são analisados, porém, por sorteio, alguns são analisados em minúcias. Isso é aceito na administração pública para enfrentamento de situações emergenciais. O TCU vem em 2018 e diz que tudo isso está errado. O processo se interrompe, o corpo da Ancine fica inseguro, e a gente se encontra na situação de hoje. A proporção estabelecida pela agência, de que a cada uma análise de prestação de contas, ela vai liberar 1,5 para o fomento, foi aprovada pelo TCU apenas agora. Estamos vivendo sob uma amarra do TCU”.
“O TCU está certo em alertar, recomendar e pedir mais celeridade à Ancine. Mas ele entrou de uma forma condenatória, o que gerou o processo que vivemos até hoje. Cabe ao TCU fiscalizar todos os órgãos da administração pública, mas hoje há uma intervenção branca na agência: a Ancine não pode dar um passo sem que o TCU aprove. A pressão é normal, mas a maneira como o TCU está fazendo não é saudável. Quanto à judicialização, duzentas produtoras entraram com processo para liberar os recursos. A Ancine entendeu isso dessa maneira: ‘Tenho mil projetos para contratar, mas duzentos querem ser passados na frente. Tenho uma amarra que me impede de ir mais rápido, mas duzentos projetos me pressionam’. Isso fragilizou muito a agência e a relação dela com a atividade. Além das trocas de presidente e de ministros, que continuaram no governo Bolsonaro, você tem outro agravamento: existe apenas um diretor formalmente constituído. Os outros são interinos, então a força das decisões não é a mesma. No final do ano passado, o presidente ficou cinco meses sozinho. Pela lei das agências, ele não poderia fazer nada. Buscou-se uma solução jurídica para a Ancine continuar, e apenas em fevereiro temos três outros presidentes interinos. Em maio de 2021, termina o mandato do Alex Braga: a situação é muito grave. Entra o Ministério Público, enquanto representante da sociedade civil, fazendo essa pressão. Se por um lado é interessante ter esses órgãos pressionando, quando eles o fazem com viés político, demonizando a nossa atividade e nossas decisões, isso é muito grave”, conclui Ivanov.
Antes, você tinha um debate público, mas como esse debate público
foi exterminado, você não tem instâncias anteriores: vai tudo para os tribunais.
“A questão da fila é um problema da Ancine, não do cidadão”, contrapõe Medeiros. “Ele está prejudicado, e todas as ações têm uma justificativa jurídica. A Ancine não cumpre a função dela de dar celeridade aos processos públicos, e de cumprir com os editais que ela mesma assumiu publicamente. Se ela não cumpre com a sua parte, não pode acusar a outra parte de reivindicar seu direito. Nos últimos anos, poderia ter sido feita uma grande assembleia de debates, para se estipular critérios. Mas não querem que esses critérios avancem, e que o audiovisual conquiste o que é dele por direito. Se a Ancine tem indícios de irregularidades na utilização de dinheiro público, estas prestações de contas precisam ser prioritárias. Se tem um passivo de prestação de contas, o primeiro passo seria estipular um prazo, para dar uma segurança jurídica ao produtor. Assim, ele saberia quando o processo teria caducado. Não tem como pedir uma nota fiscal de vinte anos atrás: isso deixa as pessoas inseguras, e faz com que o mercado fique instável”.
No entanto, o jornalista concorda com o clima de perseguição que prejudica o funcionamento da agência: “A Ancine é uma agência de estímulo e de fomento ao mercado, não de punição. Se o produtor colocou um filme nos cinemas do Brasil todo, foi bem-sucedido, deu retorno em termos de geração de emprego, então não tem problema. Esse é o pressuposto de uma agência de fomento. A maioria dos filmes com os quais a Ancine tem criado problema, tornando as produtoras inadimplentes, são filmes que tiveram grande carreira no cinema – sejam eles bons ou não, porque isso não cabe à Ancine determinar. Acredito que a Ancine está agindo de forma equivocada e contra a lei. Quando a gente falava, há alguns anos, em plena democracia, que a institucionalidade seria capaz de frear um avanço totalitário, a gente tinha em mente que seria possível o Ministério Público e os tribunais tolherem atitudes nocivas ao Estado brasileiro. Mas agora tudo está em cima do Ministério Público e da justiça. Antes, você tinha um debate público, mas como esse debate público foi exterminado, você não tem instâncias anteriores: vai tudo para os tribunais. Neste momento, o STF é obrigado a decidir sobre a liberação de vacinas! Isso não deveria estar acontecendo, já que a Suprema Corte possui outras funções. Ela está decidindo sobre tudo, porque na verdade, essa é a estratégia do atual governo: sobrecarregar o sistema jurídico de forma que, eventualmente, ele não seja mais capaz de oferecer respostas”.
Os surtos do cinema brasileiro
Tendo pesquisado a evolução das políticas públicas no Brasil desde o período da ditadura militar, Luciana Rodrigues está ciente de que o cinema já superou desafios semelhantes. No entanto, a pesquisadora destaca a recorrência destas crises: “A gente tem que aprender com a história, mas não aprendemos. O Alex Viany falava dos ‘surtos do cinema brasileiro’, ao invés de ciclos. Quando se criou a Ancine, acredito que ninguém imaginava de fato o que se tornaria o audiovisual brasileiro. A agência foi criada para ter uma estrutura muito menor. Começaram a surgir diversos marcos regulatórios que fizeram o audiovisual crescer, mas a Ancine não conseguiu crescer pelo contingente pré-estabelecido de funcionários, inclusive pela separação de funções”, ela precisa.
“A Lei do SeAC de 2011 cria um círculo virtuoso incrível: ela gera mais dinheiro para o setor através da Condecine Serviços, e temos um boom de produções no país. Mas não existe a quantidade de funcionários suficiente para fazer a análise de prestação de contas. O Ancine+Simples não foi uma ilegalidade. Essa é uma interpretação do Tribunal de Contas que prejudica a gente: surge para a sociedade civil a ideia de que produtores desviaram dinheiro, em conivência com a Ancine, e que a agência não estava fazendo todas as prestações de contas. Mas ela estava analisando todas as contas, de maneira transparente. Aí vem o Tribunal de Contas para dizer que estava sendo feito tudo errado. As pessoas começaram inclusive a ter medo de assinar as coisas dentro da Ancine. Isso gera uma insegurança na diretora, nos servidores. A judicialização pode ser boa ou ruim. Quando a sociedade brasileira se sente sufocada, acontece isso: as produtoras entram com inúmeras ações, e elas tinham todo o direito de fazer isso. Mas fica uma insegurança muito grande”, conclui.
A Ancine estava analisando todas as contas, de maneira transparente.
Aí vem o Tribunal de Contas para dizer que estava sendo feito tudo errado.
Autor de dezenas de matérias sobre o aparelhamento da Cinemateca Brasileira e a resistência do setor face ao governo, Medeiros parte do caso da instituição para compreender o atual momento: “A classe artística foi surpreendida pela ação repleta de ilegalidades do governo brasileiro, como no caso da Cinemateca. A retomada da Cinemateca foi feita com a polícia federal, dentro de um cenário de confronto. Ainda não existe uma política para a Cinemateca, apenas uma vigilância para que ela não seja depredada, mas não existe nenhum aceno de que ali haverá uma política pública. Como ela se encontra num envoltório social, pegaria muito mal para o governo deixar se deteriorar e virar poeira diante dos olhos de todos. Mas a Ancine é uma instituição simbólica, apesar de ter uma estrutura física. Ela é um organismo com uma capilaridade em toda a política de cinema. Como não se pode combater essa amplitude, a ideia do governo é sempre deixar apodrecer. Para isso, ele precisa de cúmplices, agentes que entrem nas instituições para ajudar a acabar com elas. Isso está acontecendo com a Casa de Rui Barbosa, com a Biblioteca Nacional, com o caso gritante da Fundação Palmares. A estratégia atual é de destruição. O ponto mais crucial, por causa das ambições desse grupo político, é o patrimônio histórico, que deve ser o próximo a ser destruído”.
Ancine segue os passos da Embrafilme?
Diante da crise profunda atravessada pela Ancine, cria-se o receio de repetirmos os rumos da Embrafilme, empresa criada em 1969, em plena ditadura militar, e extinta em 1990 durante o governo Collor. Quando encerrou as atividades, a Embrafilme deixou um vácuo no setor, literalmente paralisando a produção nacional durante anos. Enfrentamos o mesmo risco atualmente?
“São casos parecidos”, estima Medeiros. “A Embrafilme naufragou devido à sua própria inação, de sua incapacidade de dar respostas à sociedade. Entra o governo Collor, com um princípio ideológico ligado ao neoliberalismo, colocando em marcha mecanismos que tirassem a responsabilidade do Estado na questão do audiovisual. Geralmente as crises começam com uma investida do ponto de vista moral, sobretudo acusações de malversações de verbas, como se isso fosse exclusivo de uma determinada área da gestão pública, sendo que isso existe em todos os lugares, desde o leite condensado até a compra de jatos. A Embrafilme afunda com os mesmos pressupostos que acontecem na Ancine agora, mas temos o agravante da pandemia. O cinema perdeu, no ano passado, 133 milhões de espectadores. Isso fragiliza de uma maneira descomunal qualquer gestor público. São desafios muito grandes. A Ancine tem empregado pessoas que não têm afinidade com a área do audiovisual, apenas política. Como a agência tem um orçamento autônomo, fruto de uma taxação do mercado de teles, esse dinheiro é atrativo para todo tipo de aventureiros. Infelizmente, a Ancine está sequestrada por aventureiros nesse momento”.
Às vezes eu vejo pessoas do setor falando mal da Ancine enquanto instituição
– não estou me referindo à diretoria –, mas precisamos recordar o que foi a Embrafilme.
Débora Ivanov alerta para os perigos da demonização da agência como um todo, ao invés de dissociar o potencial da instituição das intervenções efetuadas nela: “O Cacá Diegues dizia algo importante: o Collor não acabou com a Embrafilme, ele enterrou um moribundo, que já estava há quatro anos em declínio. O setor ficava falando mal, e isso se torna muito perigoso”. Rodrigues concorda: “Eu achava ingenuamente que a gente estava caminhando para frente, e que a fronteira final seria a regulação do streaming. Mas hoje nos pegamos defendendo coisas que já nos pareciam consolidadas. Isso precisa nos servir de lição: a gente tem que aprender algo com isso. Às vezes eu vejo pessoas do setor falando mal da Ancine enquanto instituição – não estou me referindo à diretoria –, mas precisamos recordar o que foi a Embrafilme. Quando o Collor acaba com a Embrafilme, algumas pessoas apoiaram a extinção, mas durante dez anos, não veio nada melhor”.
“Por que não defender as conquistas que a gente já teve, exatamente para andar para a frente?”, ela sugere. “A gente está se deparando mais uma vez com uma crise histórica do audiovisual, relacionada à soberania. Estamos combalidos. Eu brinco com os meus alunos, dizendo: ‘Não se preocupem, já estamos acostumados a isso. Nós, profissionais do audiovisual, somos piores do que baratas. Quando tiver uma hecatombe e as baratas forem as últimas a morrer, a gente vai estar filmando isso’. A gente já passou por tudo isso. Vem mais uma crise agora, mas precisamos defender a soberania. Nesse momento, os chacais do imperialismo vão chegar – isso pode parecer paranoia de comunista, mas é bem isso. Existe uma ofensiva para enfraquecer o audiovisual brasileiro, e não acredito que isso seja paranoia. Com a Embrafilme, foi a mesma coisa: os militares foram pressionados a retirar uma série de garantias do cinema brasileiro. Se a gente não aprender com essa história, vamos repetir sempre a mesma coisa, de surto em surto”.
Cinema brasileiro face aos gigantes do streaming
A propósito da regulação do streaming e VoD, os três entrevistados concordam que esta constituiria próximo objetivo a conquistar dentro de uma agência sólida, preocupada com a proteção do conteúdo brasileiro e com nossa propriedade intelectual. No entanto, nenhum deles acredita que este marco venha a acontecer em 2021.
“Uma agência frágil não acelera em nada a situação do streaming”, afirma Ivanov. “Um ambiente politicamente frágil, sem regulação, é bom para as plataformas e os grandes players estrangeiros. Somos um dos mais importantes mercados consumidores do mundo. Eu me espelho nos americanos, que protegeram muito a sua produção, a sua indústria. Na história do audiovisual americano, você teve cota de 100% para a produção dos canais de televisão, tirando noticiários, eventos esportivos e shows. Isso durou 50 anos. Os incentivos fiscais e a proteção dada à construção de Hollywood e de toda a indústria foram gigantescos. A formação da MPA (Motion Picture Association) foi incrível: é uma instituição que visa ampliar as fronteiras da produção nacional no mundo, cuja sede era dentro da Casa Branca, tal era a importância que o governo norte-americano deu à produção audiovisual. Com a sua produção, além da indústria em si, os seus produtos, costumes e culturas se espalhavam pelo mundo. Aqui, é uma agonia por uma cotinha de 2,8%! Uma agência frágil, o tempo todo sendo questionada, não tem condições de regular nada”.
A Lei 12.485/2011 estabeleceu uma cota ridícula de 2,8% de conteúdo nacional
nos canais por assinatura. Nos países europeus, essa cota é de 50%.
De acordo com a ex-diretora da Ancine, estamos muito distantes dos padrões internacionais no que diz respeito à regulação. “A Lei 12.485/2011 estabeleceu uma cota ridícula de 2,8% de conteúdo nacional nos canais por assinatura, sendo que só metade disso era de conteúdo nacional independente. Nos países europeus, essa cota é de 50%, e dentro dela, cada país coloca a sua cota para independentes. Para essa cota brasileira minúscula, foi uma luta sangrenta de cinco anos no Congresso Nacional. Mesmo assim, isso abriu grandes oportunidades para o setor. De fato, quando a Ancine foi criada em 2001, a gente estava falando apenas do mercado cinematográfico. Ela foi constituída para regulação, fomento e fiscalização, com a Lei do Audiovisual e algumas leis de incentivo. Aí entra o artigo 3º e alguns outros incentivos, inclusive a arrecadação de Condecine Título. Começam a existir outros marcos legais, em 2006 e 2011. Quando a lei do SeAC é aprovada em 2011, o escopo de atuação da Ancine cresce brutalmente, não só na arrecadação e fomento à produção, mas também na fiscalização das cotas. O campo de atuação da agência cresceu brutalmente, sem que a agência crescesse em infraestrutura”.
“Estão protelando tudo, porque existe a possibilidade de fusão da Anatel e de extinção da Ancine”, aponta Medeiros. “Isso é muito grave. Houve agora uma portaria colocando um grupo de trabalho para tomar decisões em relação ao conteúdo da TV por assinatura. A gente percebe decisões das quais o setor audiovisual não participa, ou seja, a Ancine sequer foi chamada. A Ancine carece de autoridade no momento. Sei que no Ministério da Fazenda existe um grupo de trabalhando produzindo um estudo para substituir a Condecine. O governo trabalha com a possibilidade da extinção para fazer um novo imposto. Dentro disso, a regulação do streaming e do VoD não tem órgão de controle”.
“O VoD está sendo discutido há cinco anos. Quando eu cheguei na Ancine em 2015, eles já estavam fechando uma proposta de regulação do VoD no Conselho Superior de Cinema”, lembra Débora Ivanov. “Isso significa que a discussão já existia dois anos antes. Com esse ambiente frágil agora, é pouco provável que a gente tenha uma regulação satisfatória para o empresário nacional. Ela não seria suficiente para garantir espaço, recursos, diversidade e políticas públicas para a gente participar desta indústria, que é uma das que mais cresce no mundo. Na pandemia, então, nem se fala. Pessoalmente, não vejo com otimismo esse ano de 2021 para os processos de regulação desse mercado. A questão do VoD está sendo deixada de lado porque os streamings estão contratando. A contratação por grandes plataformas representa uma oportunidade muito boa para nós, porém a gente precisa de oportunidades de ter a propriedade intelectual nas nossas mãos”.
O fato de essas grandes plataformas estarem contratando dá a impressão
de que a situação está toda resolvida, mas não é bem assim.
A questão do streaming tem despertado boas discussões: por um lado, os gigantes como Netflix, HBO e Amazon representam postos de trabalho valiosos durante tempos de crise e de pandemia. No entanto, mesmo os projetos nacionais desenvolvidos por estas empresas não poderiam ser considerados propriedade intelectual brasileira. Ivanov exemplifica esta questão:
“Está sendo feita agora uma série sobre o Ayrton Senna. Isso é maravilhoso: se não fosse a Netflix, essa série provavelmente não existiria. Mas agora você imagina a série sobre o Ayrton Senna não ser de propriedade brasileira no futuro? É preciso ter as duas coisas: tanto as séries contratadas pelos grandes players, enquanto prestação de serviço, quanto a participação de empresários brasileiros em receitas e na performance de outras obras, para se sustentarem ao longo da história. O fato de essas grandes plataformas estarem contratando dá a impressão de que a situação está toda resolvida, mas não é bem assim. A gente ama produzir para as plataformas, mas também queremos um ambiente regulado, com mais proteção, e parte dessas obras para o empresariado nacional”. Rodrigues acrescenta: “Seria uma garantia de diversidade, não-excludente. A gente não teria apenas obras que a Netflix considera boas porque correspondem à lógica da empresa. Este é um ganho parcial, que não resulta na criação de um mercado no Brasil”.
O Brasil contra a cultura brasileira
Um fator mencionado por todos diz respeito ao desprezo do brasileiro em relação à cultura nacional. Apontam-se inúmeras distorções e preconceitos contra o cinema e o audiovisual em geral. “Adoraria ver uma pressão pública, não só do setor, para valorizar o audiovisual e fazer com que, além de não perder as conquistas que já tivemos, a gente venha a ter novas conquistas”, admite Luciana Rodrigues. “Mas a gente precisa resolver um problema histórico: as pessoas não percebem a importância do audiovisual brasileiro, mesmo que elas consumam audiovisual brasileiro. A gente nunca pensou na criação de um mercado consumidor no Brasil. No final das contas, as pessoas nem lembram que novela é audiovisual brasileiro. A construção do SeAC abriu portas para as pessoas verem audiovisual de uma maneira que elas não viam. Muitas pessoas nem sabem que O Irmão do Jorel e outras séries são brasileiras, porque não criamos um mercado consumidor”.
Rodrigues compara a frágil democracia atual com a violenta ditadura militar entre 1964 e 1985: “Nos períodos de ditadura, existe uma valorização da cultura brasileira controlada, no sentido da identidade nacional. Você tem a criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo por Getúlio Vargas, para o bem e para o mal, apesar da censura. Na ditadura veio o Instituto Nacional de Cinema e a própria Condecine, além da Embrafilme. Por um lado, essa era uma tentativa de domesticar a cultura, por outro lado, nas democracias, você tem a lógica do eleitorado, criado para pensar que apenas a educação, saúde e às vezes transporte e segurança são importantes. Você não vê passeatas pelo direito à cultura. Estamos numa situação de fundo severa, articulada para destruir as manifestações culturais no Brasil. Precisamos de uma sociedade civil organizada. Além do valor simbólico da cultura e da arte, existe a questão da indústria: 355 mil empregos estão sendo destruídos. É uma terra arrasada, mas quem vai ocupá-la depois? Alguém vai ocupar este espaço, porque existe a necessidade de controle”.
A gente nunca pensou na criação de um mercado consumidor no Brasil.
No final das contas, as pessoas nem lembram que novela é audiovisual brasileiro.
“A falta de visão da sociedade em valorizar a cultura e o audiovisual se contrasta com o exemplo da França”, segundo Débora Ivanov. “A França tem um programa onde o audiovisual é obrigatório nas escolas. Eu visitei, junto do Forcine, escolas de audiovisual na França, e conheci este programa que eles queriam compartilhar com a gente. As crianças assistem a filmes nacionais, aprendem a analisar a fotografia, a analisar as atuações, a história. Isso desperta o amor à cultura e à indústria audiovisual, entendendo todas as funções por trás. Quando ele se torna um jovem adulto, sai nutrido pela cultura, com uma afetividade construída em relação à sua indústria. Eles têm orgulho da produção nacional. É ridículo quando a pessoa ataca a produção brasileira, mas é o maior consumidor de novelas. Isso é produção nacional, só não é independente. É horrível ter esse vazio cultural nas escolas, na formação”.
A França também serve de exemplo para Jotabê Medeiros. “O nosso modelo de financiamento é igual ao do mundo todo, embora os outros sejam aplicados com mais seriedade. Você vê o modelo do audiovisual francês, que é um dos mais fortes, assim como a Inglaterra. As pessoas costumam pensar que tudo é privado nos Estados Unidos, o que é uma grande mentira. Hollywood é um dos parques industriais mais subsidiados do mundo. O filme sul-coreano Parasita (2019), que ganhou o Oscar, é fruto de uma política de audiovisual ousadíssima. O mundo todo é baseado no estímulo do Estado, que decide fomentar as políticas culturais”.
Os artistas “mamam nas tetas do governo”?
De fato, a discussão sobre a percepção popular da cultura nacional despertou momentos de risos nervosos e suspiros. “Eu acho engraçado quando as pessoas nos comparam com o cinema americano, dizendo: ‘Eles sim conquistaram esse mercado, fruto do empreendedorismo norte-americano’. Mas não foi isso”, corrige Débora Ivanov. “No pós-guerra, todos os empréstimos feitos pelo governo americano para a reconstrução de diversos países traziam como parte das exigências a abertura de portas para a produção americana. O Estado agia de maneira contundente para a ampliação de sua indústria. Eles têm outros tipos de incentivo, principalmente de ordem local. A grande parte da cinematografia independente nos Estados Unidos conta com fundos privados e fundos públicos. Dizer que nós somos completamente dependentes do Estado é uma mentira. Muitas produtoras produzem das duas formas: nas plataformas, nos canais de televisão, e também com recursos públicos”.
A ex-diretora da Ancine vai além, ao criticar os produtores que desdenham das políticas públicas. Talvez ela não estivesse pensando especificamente em Fernando Meirelles, mas vale lembrar que o cineasta de Cidade de Deus (2002) manifestou orgulho em ter produções “Ancine-Free”, em suas palavras, ou seja, sem necessitar de recursos da agência, conforme reportagem de Jotabê Medeiros no Farofafá.
“Hoje, algumas produtoras se orgulham de produzirem para as plataformas, demonstrando certo desdém pelo recurso público”, continua Ivanov. “Eu falo para essas pessoas que elas só estão sendo contratadas por essas plataformas agora porque atingiram um nível de amadurecimento que foi fruto de políticas públicas. Senão, elas não teriam o amadurecimento para encarar uma série de vários episódios, com aquela qualidade. Existem produtoras produzindo para canais de televisão, algo que não existia antes. No começo a gente fazia apenas filmes para a TV Cultura, para a TV educativa e olhe lá. O ideal é ter as duas formas de financiamento, mas um mercado que ainda não é forte precisa da mão do Estado. O grosso do fomento da nossa atividade vem da própria atividade. O Tribunal de Contas, na sua primeira interpretação da Ancine, sugere que este dinheiro deveria estar sendo usado para a segurança pública, a saúde etc. Mas esse é um equívoco gigante, porque o Fundo Setorial tem fundos que provêm da própria atividade. Esse círculo virtuoso ajuda as empresas a amadurecerem e buscarem oportunidades na iniciativa privada. Existe uma defasagem grande na comunicação para abrir os olhos da nossa sociedade em relação à indústria”.
Escolas precisam existir e são fundamentais, mas
o que te torna alguém com uma compreensão do mundo é a arte.
“Primeiro a gente tem que entender o valor da cultura para o país. Meia dúzia de representantes do Partido Novo, MBL e afins vão dizer que saúde e educação deveriam ser privadas”, dispara Luciana Rodrigues. “No geral, a sociedade brasileira não acha isso. Ela gosta das universidades públicas – mesmo a burguesia quer colocar os filhos em universidades públicas. Algumas pessoas atacam o SUS, mas ainda existe grande aceitação. Pela lógica, podemos entender que as pessoas consideram saúde e educação como setores essenciais. Mas o que é essencial? Cultura é essencial. A gente nem deveria estar discutindo se tem que ter dinheiro público para o cinema: é claro que tem que ter dinheiro para a cultura. Precisamos valorizar isso. Mas a partir dos anos 1990, o Estado passa a abrir mão de arrecadar parte dos impostos, e isso é grave: veja o que aconteceu com a Ford agora, que obteve uma série de incentivos fiscais, e agora saiu do país”.
Por isso, segundo a professora de Legislação, “precisamos limpar esse terreno. É preciso ter políticas públicas para o audiovisual, porque é isso que vai tirar o nariz da lama. Escolas precisam existir e são fundamentais, mas o que te torna alguém com uma compreensão do mundo é a arte. Não falo nem apenas da cultura, mas da arte que coloca o dedo na ferida, incomoda e nos faz sujeitos questionadores. As pessoas não entendem o que aconteceu com as leis de incentivos fiscais, mas na verdade se trata de uma parcela muito pequena de impostos, que não poderiam servir para outros propósitos. Além disso, desde que a Ancine foi criada, o audiovisual não depende mais da Lei Rouanet. Apenas curtas-metragens e documentários continuam na Lei Rouanet, mas a partir de 2006, os longas de ficção, de maior porte, vão todos para a Ancine. Com a criação do Fundo Setorial do Audiovisual, você tem um setor que não apenas se autossustenta, mas também dá dinheiro para o governo fazer outras coisas. A gente está alimentando os outros setores, porque esses recursos nem vão apenas para a gente. A arrecadação das Condecines está alimentando a União, está servindo para o superávit primário. A gente não dá prejuízo, pelo contrário: damos lucro para a União”. Ivanov fornece dados para sustentar esta afirmação: “Fiz um cálculo desde o início do Fundo Setorial até o fim de 2017. Em média, 50% dos recursos arrecadados com o audiovisual ficaram com a União”.
As pessoas que mais contribuem culturalmente ao país são aquelas
mais acusadas popularmente de se beneficiarem do sistema.
Jotabê Medeiros evoca a famigerada, e tão mal compreendida, Lei Rouanet. “No Brasil, por uma ignorância congênita, combate-se a arte por acreditar que a classe artística vive mamando nas tetas do poder público, como se costumam dizer. Mas eles não conhecem de fato a Lei Rouanet. Sabia que na Lei Rouanet a remuneração do artista dentro do projeto é um dos itens mais modestos do orçamento? O cachê do artista dentro do projeto tem valores pequenos. Os grandes projetos, na verdade, são feitos pelas maiores empresas e bancos. Estes, sim, poderiam eventualmente ser acusados de mamarem nas tetas na Estado. Mas nunca ninguém aponta o dedo para eles, porque os ataques são personalistas, fruto de uma má vontade do país consigo mesmo. As pessoas que mais contribuem culturalmente ao país são aquelas mais acusadas popularmente de se beneficiarem do sistema. Não existe nenhuma evidência de artistas se enriquecendo através disso. Além disso, trata-se de um princípio de renúncia fiscal: as pessoas precisam ir ao mercado para procurar um patrocinador, que vai tentar fazer com que o Estado libere o dinheiro dentro da receita de Imposto de Renda, por meio de uma isenção. Mas é difícil debater com as pessoas prontas para a agressão contínua”.
Há censura no governo Bolsonaro?
Desde que Jair Bolsonaro assumiu o poder, com uma pauta reacionária nos costumes, e uma ofensiva clara contra os grupos contrários à sua eleição, os artistas se encontram em estado de alerta contra possíveis atos de censura por parte do governo defensor das ditaduras. Muitos casos foram evocados por diretores e produtores para justificar uma possível censura: a suspensão de um edital para a televisão pública, com filmes de temática LGBT; a paralisação administrativa do filme Marighella, de Wagner Moura; a exibição suspensa de A Vida Invisível aos funcionários da Ancine, a rejeição da prestação de contas de diversos filmes brasileiros. Afinal, existem casos que podem ser considerados, legalmente, como atos de censura pelo atual governo?
“Se eles tentarem censurar, vai ter briga, como está acontecendo agora”, rebate Luciana Rodrigues. “Um juiz acatou uma denúncia do Ministério Público – apenas uma ação inicial, ainda vai ter o processo – em relação ao famoso caso do edital das TVs abertas. Eu cheguei a analisar alguns projetos, e estava tudo dentro da lei. Inclusive, havia segmentos do edital que previam a existência daqueles temas. Bolsonaro fez aquela bravata toda, porque teve acesso a resultados que não poderia ter, e disse que não pagaria milhões de reais para esses filmes. Nem eram milhões, eram 80 mil reais. Um ato administrativo do ministro suspendeu a iniciativa. Isso é importante: Bolsonaro não disse que suspenderia pela temática; o argumento era administrativo. A censura existe, mas não é manifestada dessa forma tão clara. Ela se manifesta numa questão administrativa: a partir do momento em que tudo é suspenso, ou a grande maioria, nem se fala mais em censura, porque ninguém está fazendo nada”.
É importante deixar claro: a censura pode se manifestar de formas
muito mais inteligentes do que uma interdição temática.
Ela relembra um fato pouco considerado quando se compara a produção atual e aquela de décadas atrás: “As pessoas dizem que ‘antes, o dinheiro ia para os comunistas’, mas na verdade, as temáticas eram consideradas muito mais de diversidade do que aquelas presentes nas comédias românticas e nos filmes religiosos de hoje. É importante deixar claro: a censura pode se manifestar de formas muito mais inteligentes do que uma interdição temática, com um presidente gritando ‘Eu não aceito!’. A gente subestima o governo às vezes, mas eles estão nos matando administrativamente, com justificativas insidiosas. Se Bolsonaro fizer um ato dizendo: ‘Não pode fazer esse filme porque tem temática LGBT’, ele não vai conseguir levar isso adiante. A estratégia é muito mais inteligente, porque ela se expressa pela paralisia”.
“Você não pode ter atos de nenhum servidor público que seja de censura por conta de alguma discriminação”, precisa Débora Ivanov. “O que acontece é diferente: antes havia o desejo de ampliar uma diversidade. Estimulava-se filmes de mulheres, de profissionais negros, de artistas LGBT etc. Isso não vai acontecer mais enquanto política, mas não chega a ser uma censura. Há uma má vontade em relação a alguns projetos, mas não vejo censura. No caso Marighella, apesar de o atual governo ser contrário a este tipo de filmes, não entendo que o que aconteceu com o filme tenha sido censura, e sim problemas técnicos de condução. O problema na prestação de contas de um ou outro filme não acontece por causa da temática: muitos filmes estão tendo contas reprovadas por outras questões. Na prática, não há censura, apesar de o governo querer. O governo adoraria chegar, pegar a listinha de filmes e dizer: ‘Não quero esse aqui’. Mas isso não vai ser possível”.
Medeiros evoca dois casos que, em sua avaliação, constituem atos de censura, primeiro no caso evocado acima, a respeito do edital que incluía produções LGBT. “Osmar Terra suspendeu o edital por motivos ideológicos, por uma questão de costumes – e não sou eu que estou dizendo isso, foi o próprio presidente que disse essas coisas. Quando assumiu isso, prejudicando os produtores que fariam estes filmes, o ministro incorreu num caso de improbidade administrativa, dando prejuízo ao poder público. Afinal, o edital foi cancelado, e tinha sido investido dinheiro nisso, além da projeção de resultados”. Em seguida, ele menciona um caso pouco reportado pela grande imprensa, que ocorreu um dia após nossa entrevista com Luciana Rodrigues e Débora Ivanov:
Não existe um governo para a direita, outro para a esquerda, outro para o centro.
O financiamento precisa ser para todos.
“Existem outros casos concretos. O Secretário de Cultura, Mário Frias, publicou uma foto que constitui uma confissão de censura. Ele diz que tem contingenciado recursos para tentar tirar a esquerda brasileira da disputa de financiamento de projetos. Essa publicação é um caso de polícia: houve um agente público declarando oficialmente que há censura no Estado, e que ela se destina a produções de esquerda. Mas o que é a esquerda? Fernanda Montenegro, Chico César, Gilberto Gil? Tudo é esquerda para eles, porque toda arte parte de um pressuposto de esforço de compreensão da humanidade, das lutas que o ser humano trava. Se o ser humano trava lutas e, pela consciência que estes homens têm do mundo, qualquer luta é de esquerda, então tudo é de esquerda. Eles estão fazendo um contingenciamento de tudo que seja minimamente humanista. Deveria ser aberto um inquérito para que ele esclareça o que entende por esquerda. O poder público é republicano, isso está na constituição. Não existe um governo para a direita, outro para a esquerda, outro para o centro. O financiamento precisa ser para todos, independentemente da coloração política e ideológica. O único critério é a qualidade da criação. O que houve neste caso foi um crime confesso”, conclui o jornalista.
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