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Contemplativo. Este parece ser um adjetivo mais do que adequado para descrever As Aventuras de Pi (2012). Não apenas porque o longa é composto por belíssimas e significativas imagens. Nem pela moral da história que o filme traz. Acima de tudo, Pi é contemplativo porque nos convida e, meio que por tabela, nos ensina o difícil de ato de olhar, ouvir, sentir… contemplar.

A trama, adaptada do romance de Yann Martel, acompanha o garoto indiano Piscine Patel (o Pi do título). Em busca de oportunidades, a família, que administrava um zoológico, junta os animais e parte de navio para o Canadá. O navio acaba naufragando e Pi tem de sobreviver num pequeno bote salva vidas, tendo por companhia um orangotango, uma zebra, uma hiena e um tigre de bengala.

Tanto no livro como no filme, cada detalhe é múltiplo, simbólico. A ideia não é contar uma história de aventura, muito menos explicar como Pi foi do ponto x ao ponto y. Trata-se de uma grande parábola. O que, por si só, já dá o tom “religioso”, tão propício à obra.

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Acontece que, desde a infância, o protagonista é apaixonado por religiões. E as coleciona, como se fossem bolinhas de gude. Faz orações islâmicas, frequenta missas católicas, oferece prendas aos deuses hindus. Assim, não é por acaso – nem por descuido – que ele talvez se veja numa versão em miniatura da arca de Noé. Ou que encare agruras e desafios vividos por pessoas tão díspares como Jesus, Maomé e Krishna. Mais do que falar sobre a existência de Deus (um ou muitos) ou contar uma história de superação, As Aventuras de Pi quer falar sobre a presença do divino, do reino das coisas que ultrapassa o tangível e que só é acessível por meio da contemplação.

É quando a escolha de Ang Lee para a direção se mostra a mais acertada possível. Talvez por sua origem oriental (o diretor é taiwanês), Lee sempre teve um bom olho para o “simples”, o tácito. Seus filmes, embora marcantes, pareciam acabar pendendo o “espetáculo” em direção aos pequenos atos, à calmaria, a trilhas singelas – por mais que memoráveis – e ao tempo, mais do que ao espaço ou às ações dos personagens. Não ao tempo cristalizado em forma de cinema, como fazem brilhantemente Ozu ou Haneke, por exemplo, mas ao tempo num sentido mais simbólico, convergindo passado, presente e futuro.

A grande carta na manga é que, no caso de Pi, essa visão é a chave para conseguir filmar um livro que, antes desta produção, muitos julgavam infilmável. Como, afinal, tornar interessante, em imagens, uma história que se resume em um barco à deriva no maior dos oceanos da Terra, tendo apenas um humano a bordo? A ideia imediata de povoar a trama com inserts e flashbacks, seria infeliz porque destruiria o núcleo duro de tudo o que o roteiro quer transmitir: eliminaria da história o vazio, que leva à contemplação, e chamaria a atenção para a jornada do protagonista que, sozinha, é apenas um conto simples de superação.

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O que Lee fez então? Desde o começo do filme, quando observamos vários planos-sequência de animais em seus habitats, o diretor parece dizer: pare, olhe, escute. No primeiro ato, parte mais “movimentada” da trama, as imagens e os atores vão sendo conduzidos de forma a desacelerar a percepção e levá-la até o ponto em que esteja preparada para encarar momentos onde, em termos clássicos de narrativa, quase nada acontece. No entanto, a necessidade da ação é tão nula quanto sua falta, e Lee começa a povoar a tela com estrelas, criaturas marinhas, um mar que espelha e o céu e, simbólica e literalmente, funde o terreno e o paradisíaco. Um esforço muito bem acompanhado pela equipe de efeitos visuais, merecidamente premiada com um Oscar.

O mais curioso, no entanto, é que o diretor faz tudo isso sem deixar de lado a linguagem clássica do cinema, tão cara à Hollywood. Não há novidades de decupagem, nem planos-sequência que cansariam o espectador médio americano. O roteiro tem três atos bem marcados e a alinearidade da trama é a mínima necessária para não torna-la enfadonha. As atuações são naturalistas. É o grande truque de Lee e que, sob esse ponto de vista, parece ter sido o motivo da sua vitória sobre Spielberg (não tão surpreendente como alguns julgariam) na categoria de Melhor Diretor do Oscar 2013: ele falou de conceitos e metáforas extremamente eruditos numa língua que as massas entendem – inclua-se aí os votantes da Academia.

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Fala da presença divina mimetizada na figura materna. Fala de tigres e dragões ainda mais simbólicos que aqueles da China. Fala de deuses dos quais o público ocidental talvez nunca tenha ouvido falar. Fala da redenção por meio da fé. Mas, o mais importante, toca o coração do espectador e deixa que ele dialogue com toda essa falação. É quando ele atinge o estado de contemplação.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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