O plano que abre John Wick: Um Novo Dia Para Matar, continuação do ótimo De Volta ao Jogo (2014), traz Buster Keaton em ação, projetado num imenso prédio de Nova York. A câmera do diretor Chad Stahelski faz então um travelling para baixo, encontrando uma alucinada perseguição de carros que dá início à história contada no filme. Isso é muito significativo do tipo de cinema que Stahelski está fazendo. Como o próprio comentou em entrevistas, não se trata de uma escolha aleatória: a presença de Keaton em cena funciona como uma espécie de anúncio de que tudo que será visto dali em diante em matéria de ação, movimento, princípio básico do cinema, tem origem nos filmes mudos.
Nesse sentido, vale considerar, por exemplo, A General (1926), de Keaton e Clyde Bruckman, construído sobre a lógica de corpos se deslocando em alguma direção ininterruptamente, seja, como na maior parte do tempo da narrativa, dentro de locomotivas, seja a cavalo ou correndo num campo de batalha. A General parece ser uma matriz ainda mais importante para outro filme de ação recente, Mad Max: Estrada da Fúria (2015), marcado não só por essa ideia de constante movimento, mas também pela presença de veículos antropomorfizados (esse não seria o caso da locomotiva General, conduzida pelo personagem de Keaton?) percorrendo estradas quase onipresentes.
É verdade que não há essa centralidade do deslocamento dentro de veículos em John Wick: Um Novo Dia Para Matar, ainda que cenas do tipo existam (a já referida perseguição inicial e o embate entre o protagonista e o personagem de Common no metrô, por exemplo): o interesse principal do diretor está no movimento dos corpos que povoam as imagens que cria. E o resultado obtido nesse aspecto é não menos que impressionante. Em tempos de um cinema de ação hiperfragmentado, no qual o excesso de cortes é regra (vide a franquia Bourne, na qual David Leitch, codiretor não creditado do primeiro John Wick, trabalhou como dublê e ator), Stahelski aposta em planos geralmente mais abertos e longos, que permitem a apreciação plena pelos olhos, já que quase sem interrupções, das lutas meticulosamente coreografadas. Aliás, a maneira como é filmada a interação dos atores com o espaço nessas cenas de ação remete à estética dos games, tanto no posicionamento e movimentação da câmera em muitas delas, quanto pela própria existência de “fases” pelas quais John Wick (Keanu Reeves) tem que passar para cumprir sua missão e sobreviver.
No entanto, diferentemente do quarto e quinto filmes da série Resident Evil, que buscam emular o universo dos games a partir de uma excessiva artificialização das imagens (a realidade é puramente virtual, simulacro), John Wick: Um Novo Dia Para Matar o faz simplesmente por meio da mise-en-scéne, mantendo os pés fincados na encenação com atores e dublês em ambientes reais. Residem aí a força e a originalidade visuais do trabalho de Stahelski.
Narrativa e esteticamente, seu filme consegue dar conta de quase toda a história do cinema de ação, começando em Buster Keaton – e é interessante observar como as referências ao cinema mudo surgem também na figura de uma personagem desprovida da fala, cujos diálogos, em linguagem de sinais, aparecem escritos no plano, remetendo às cartelas de outrora –, mas passando também pelo homem sem nome criado por Sergio Leone – Wick se assemelha bastante, na atitude e na presença icônica, ao personagem interpretado por Clint Eastwood em Por um Punhado de Dólares (1964), Por uns Dólares a Mais (1965) e Três Homens em Conflito (1966) – e pelos tantos heróis “exércitos de um homem só” dos anos 1980, encarnados por figuras como Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger, Chuck Norris e Jean-Claude Van Damme. Ao mesmo tempo, em seu diálogo aberto com a mise-en-scène dos games, John Wick: Um Novo Dia Para Matar recusa qualquer leitura nostálgica, se mostrando radicalmente moderno e apontando para um possível futuro do gênero a que se filia.
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