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Com a pandemia de coronavírus e o fechamento das salas de cinema, os críticos ficaram restritos às sessões caseiras em streaming, às revisões de títulos fora do circuito ou aos links de imprensa, cedidos aos profissionais. Numa dessas sessões recentes, assistia a Atrás da Estante (2019), documentário sobre um casal idoso que gerenciou durante décadas uma locadora e produtora de filmes pornográficos gays. O filme é leve, evitando entrar em polêmicas. Isso resulta em imagens plácidas até demais: como fazer um filme cheio de pudores sobre algo escandaloso? Como adotar uma forma tão convencional para abordar a vida de pessoas fora dos padrões? O cinema não deveria adotar uma estética capaz de dialogar com seu tema? Enquanto as tradicionais entrevistas se sucediam em ritmo linear, surgia a expectativa de encontrar algum elemento dissonante: uma imagem mais violenta, uma quebra de ritmo, uma dissociação completa entre som e imagem. Talvez a introdução do elemento perturbador, após tamanha calmaria, resultasse num choque ainda maior ao público, equivalente ao choque dos filhos do casal ao descobrirem a profissão dos pais.

 

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Atrás da Estante

 

Enfim, a cena chegou: uma imagem congelada da caixa de papelão no depósito da livraria, contendo DVDs de filmes pornográficos, enquadrando displicentemente a capa de um dos títulos enquanto o som continuava. As conversas não apenas continuavam, mas iam muito além: a senhora idosa confessava o desejo de fechar a loja e a tristeza de presenciar o fim de uma geração, enquanto nosso olhar permanecia preso à imagem de um sujeito musculoso e sem camisa, solitário dentro do cômodo empoeirado. Havia certa poesia ali: a potência do corpo viril em contraste com o discurso da impotência e da falência; o filme sobre gozo e celebração da vida em contraposição com um discurso de morte. Minutos depois, no entanto, a imagem engasga, trava rapidamente, e retorna às cenas comuns: entrevistas da senhora idosa, correspondência tradicional entre som e imagem. O que tinha acontecido? Voltando a imagem alguns minutos, percebo se tratar de uma falha técnica no serviço de streaming. Por algum motivo, a imagem congelou num ponto aleatório, enquanto o som seguiu seu percurso. Volto, assisto novamente ao trecho e a magia das capas de DVD agonizantes se perde – tratava-se de mais uma sequência convencional. Aquela cena, a mais bela do filme inteiro, não existia no documentário, e não foi vista por mais ninguém.

Trata-se de uma inesperada beleza fantasma – sem diretor, sem controle, sem objetivo. Se a obra de arte é definida pelo fruto de uma intencionalidade aplicada a uma personalidade específica, a cena em questão se tornava uma antiarte, a produção autoral do acaso. Algo semelhante aconteceu com The Kill Team (2019), drama antiguerra sobre a invasão norte-americana no Oriente Médio. Um filme potente, no qual as maiores violências estão escondidas do espectador – seja fora de quadro, seja pela retirada do som sincrônico. Pela recorrência de agressões ocultas aos olhos do espectador, não foi uma surpresa quando a tela preta tomou a cena, enquanto os tiros e gritos criavam uma sensação asfixiante sobre o Afeganistão. Muitos projetos optam pela suspensão da imagem quando acreditam que nenhuma representação possa ser tão forte quanto o imaginário coletivo, ou seja, a imagem mental que o espectador criará para si mesmo. Ao invés de fornecer todos os elementos, colocando o público em posição passiva, solicita-se que projete seus medos, seus conhecimentos e desejos sobre uma sugestão sonora. A cena sem imagem constituía uma bela iniciativa de um filme marcado por belas iniciativas, até eu perceber, novamente, que o instante não existia. Mero erro: voltando um pouco a projeção, os soldados apareciam, os gritos emanavam de corpos visíveis e os tiros eram disparados por armas nítidas.

 

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The Kill Team

 

A sensação após estes momentos é estranha. Paira a impressão curiosa de ter sido vítima de uma pegadinha, um trote. “O filme não é assim, seu babaca. Te peguei”. Mas trotes partem da atividade (maldosa, maliciosa, divertida) de alguém, ao passo que estas cenas não partiam de vontade nenhuma, nem a minha, nem a do diretor, e muito menos do serviço de streaming. Ao mesmo tempo, existe a satisfação de ter presenciado algo especial, algo único, que não deveria acontecer. O olho, neste caso, espia pela fechadura para assistir a algo inadequado, e ao mesmo tempo exclusivíssimo, visto que ninguém mais passa pela mesma experiência. Estas cenas fascinantes suscitaram imediatamente a atenção, provocaram uma ruptura na fluidez do filme e convidaram a uma tentativa rápida de interpretação daquele momento: o que está acontecendo, então? A cena é assim mesmo? A montagem teria optado por estes recursos de verdade? Imputa-se uma coerência a algo incoerente por natureza. Partindo da teoria da imagem segundo a qual a obra só completa seu sentido nos olhos daquele que a enxerga, sinto a satisfação de ser também coautor daquela cena em especial, a cena dissonante e bela, que existiu apenas porque eu a acompanhava. Tornamo-nos cúmplices, a cena e eu, o cinema e eu, como se ele me confessasse: “Este será nosso segredinho”.

Nem todos os filmes imaginários ocorrem na intimidade e no anonimato. Durante um festival em São Paulo, em 2019, assisti ao filme Platamama (2018), que aborda a vida de imigrantes bolivianos no Brasil. Eles trabalham muito, ocupam pequenas casas cheias de pessoas, de cachorros, de bebês, de máquinas de costura barulhentas que não param jamais. Os personagens conversam por cima de todos os outros ruídos – e, no caso, sem qualquer legendagem. Talvez o espectador fluente em espanhol compreendesse todas as interações. Não era o meu caso. Saí rapidamente da sessão para perguntar aos monitores se não faltavam as legendas do filme. Recebi a resposta de que não havia legendas: a sessão era assim mesmo. Em voz mais baixa, a monitoria confessou que acreditava se tratar de uma intenção da diretora em apresentar o longa-metragem dessa maneira. Consenti. Voltei à sala escura e absorvi o que conseguia absorver daquelas trocas. Passei a encará-las como não essenciais: a diretora Alice Riff provavelmente buscava mergulhar o espectador na mesma sensação de não-pertencimento, e de imersão numa cultura distinta, experimentada por seus personagens.

 

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Platamama

 

Surgiam então teses e hipóteses mentais. O filme valeria pela confusão, ao invés do esclarecimento. As interações ocorreriam apesar de nós, e não para nós, o que serviria a colocar os bolivianos em situação privilegiada em relação ao público. A diretora demonstraria pudor e respeito ao não traduzir as falas, evitando intervir naquelas interações naturais. Ao final, surpresa: um pedido de desculpas do festival. Faltavam as legendas, e a cópia adequada não tinha chegado a tempo. Quem quisesse poderia pedir o dinheiro de volta, ou mesmo trocar pelo ingresso de outra sessão. Mas eu não queria. Apesar de minha rejeição inicial, gostava do filme que tinha visto, ainda que ele não existisse de fato, ou que tivesse acontecido apenas para mim e mais trinta pessoas ao redor, que tinham acompanhado a mesma performance efêmera. O meu Platamama, a partir daquele momento, correspondia àquela versão. Não queria assistir à cópia “correta”, nem mudar as impressões que me estimularam. A versão legendada se transformava aos meus olhos em impostora, em sequência não-autorizada, num director’s cut pretensioso. O Platamama era apenas aquele, exclusivo e raro, sobre a incomunicabilidade e a incompreensão diante dos estrangeiros.

Esta forma de perturbação dos sentidos data de muito antes da minha profissionalização na crítica. Em 2003, primeiro ano da faculdade de cinema, lembro-me de ter aconselhado um belo filme a todos os colegas de turma: Terra de Ninguém (2001), comédia dramática sobre a guerra entre Bósnia e Sérvia. O conselho veio acompanhado do elogio a uma cena específica, rumo ao final, envolvendo tanques aparecendo no horizonte. A luz era linda, e o significado daquela metáfora (a guerra no horizonte, a beleza do pôr do sol em contraposição à dureza do tanque e da guerra) produziam um efeito lindo. Os amigos assistiram e concordaram que o filme era muito bom, com um detalhe: não havia cena do tanque. Nem ao horizonte, nem em lugar algum. Eu me expliquei, insisti, e prometi ver de novo, apenas para descobrir que não havia, de fato, nenhuma cena do tanque. Eu certamente teria confundido com o trecho de outra narrativa, que a memória acabou deslocando para outro filme. Teria sonhado, talvez? Projetado no drama o que gostaria de ver? Admiti o erro grosseiro aos amigos, parte envergonhado pelo deslize sem explicação, mas parte orgulhoso: aquela cena continuava sendo minha e de mais ninguém.

 

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Terra de Ninguém

 

O conceito de luxo e de preciosidade sempre foi ligado à raridade: se houvesse ouro e diamante em cada esquina, essas pedras não seriam preciosas. Se todos pudessem viajar à Europa, a viagem não seria objeto de ostentação e sinônimo de status. Nestes casos, mantive o orgulho frívolo de um objeto de luxo imaginário: os belos filmes que nunca existiram, e nem existirão para outros olhares. Eles não se diferem, estruturalmente, dos sonhos ou alucinações que tanto fascinam a lógica racional. Afinal, nascem da ausência temporária de controle, impondo-se a nós como verdades. A vontade de crença em cenas imaginárias não corresponderia a uma expansão do próprio pacto com a arte, uma decorrência natural do estímulo à imaginação? O cinema não teria, em última instância, a capacidade de transformar seus espectadores em co-criadores da obra? Fico me perguntando se talvez não gostamos de algum diretor, ator ou roteirista por imagens que jamais existiram objetivamente – por algum significado que só diria respeito a nós. O talento se transformaria em impressão de talento, a qualidade se tornaria percepção de qualidade. O cinema só existiria nos olhos daquele que o vê. Assim, a frase “Você não deve ter visto o mesmo filme que eu!”, disparada pelos arrogantes, inconformados com a opinião diversa do interlocutor, traria uma parcela de verdade. Um filme se torna tão múltiplo quanto a quantidade de espectadores que atinge.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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