É muito comum ocorrer uma grave confusão entre a retórica dos personagens e o discurso dos filmes nos quais essas figuras estão inseridas. Para algumas pessoas, basta um protagonista ou um coadjuvante importante exibir comportamentos reprováveis para, quase de maneira imediata, o filme/a série se tornar alvo de críticas negativas. Não raro, nesses tempos de “cancelamentos”, prática que alia preguiça reflexiva e suposta altivez moral diante de algo ou alguém controverso, obras inteiras passam por revisionismos levianos. E esse emaranhado ganhou matizes ainda mais intrincados, inclusive passíveis de nos turvar sobremaneira a visão, com o surgimento do #MeToo, esse necessário movimento que visa acabar com abusos na indústria do entretenimento. Se antes era corriqueiro apenas o embaralhar entre a conduta dos personagens e a expressão do produto audiovisual, atualmente as atitudes dos realizadores também são colocadas nesse balaio, como se tudo fosse a mesma coisa. Mas, isso é outro assunto.
HOLLYWOOD COMO MODELO
Tendo Hollywood como parâmetro, é preciso remontar ao começo da chamada Era de Ouro do cinema estadunidense que, com variações, serviu de modelo para praticamente todas as cinematografias ascendentes (seja como matriz estético-narrativa ou de negócios). Eram excepcionais os protagonistas com graves desvios de conduta nesses primeiros tempos do cinema. Na maioria das vezes, se tratavam de figuras dotadas de altivez moral, capazes de nos cativar por serem essencialmente melhores do que nós, altruístas, dispostas a tudo para fazer a coisa certa. Nos ganhavam por serem exemplares, algo considerado essencial numa sociedade que enfrentou Primeira Guerra Mundial e um pouco adiante a Grande Depressão. Aos poucos, porém, foi crescendo a demanda por pessoas na telona que refletissem, de alguma forma, a complexidade da realidade, num movimento de refutamento do maniqueísmo, essa filosofia dualística que não compreende o todo. A influência das vanguardas europeias foi vital.
O cinema noir tem uma grande importância nesse sentido, por expandir as fronteiras morais do cinema norte-americano, lançando luz sobre (principalmente) homens capazes de atos reprováveis, mas ainda assim de sustentar o protagonismo. Influenciado pelo Expressionismo Alemão, esse gênero repleto de detetives ambíguos e femmes fatales era possível pela natureza alternativa das produções, pelo baixo orçamento e, por conseguinte, em virtude do pequeno risco financeiro que corriam. Tanto que em escala industrial, essa recorrência de sujeitos controversos na telona estadunidense apenas viria a acontecer em meados dos anos 1960, quando a Nova Hollywood sepultou a Velha Hollywood ao espelhar os anseios de uma sociedade pós-guerra (a Segunda) que não se conformava mais com a reiteração dos mesmos valores, que não se sentia contemplada no cinema. Demorou, mas felizmente chegou.
HOMENS DIFÍCEIS
No entanto, já na televisão essa observação humana multifacetada demoraria bem mais a chegar, o que nos faz estabelecer uma ponte direta entre o escopo da abordagem e o âmbito industrial. Produtos de massa tendiam a não arriscar leituras aproximadas, “humanizadas”, de figuras odiosas, preferindo o bom-mocismo à polêmica. No livro Homens Difíceis, o escritor Brett Martin detalha o árduo processo de convencimento dos executivos da televisão norte-americana quanto à necessidade de apostar em histórias densas, estreladas por personagens controversos, contraditórios e, inclusive por isso mesmo, verossímeis. Na atualidade repleta desses apontamentos, nos quais somos frequentemente levados a nos conectar com homens e mulheres de atitudes para lá de questionáveis, é difícil imaginar o quão vanguardista foi uma série como Família Soprano (1999-2007), centralizada num homem irascível, capaz de estrangular alguém enquanto acompanha a filha num tour por universidades, mas que também deixava expostas suas fragilidades. Na esteira de Tony Soprano (James Gandolfini) vieram Don Draper (Jon Hamm), de Mad Men (2007-2015), e Walter White (Bryan Cranston), de Breaking Bad (2008-2013), entre tantos herdeiros.
Agora, a questão essencial é: mostrar Tony Soprano sendo infiel, assassinando ex-associados a sangue frio, destilando toda sua xenofobia e ignorância, automaticamente celebra tais comportamentos? É preciso aquiescer diante da escalada de brutalidades de Walter White para, de alguma maneira, ter empatia por determinadas atitudes que o tornam crível? Além de pueril, beira a inocência a leitura dos discursos pura e simplesmente a partir das atitudes apresentadas. Redução perigosa. Pois, de que forma essas ações e consequentes reações são desenhadas? Tony, Walter e Don são festejados ou têm, devidamente, suas condutas entendidas como frutos de suas criações, dos meios em que se desenvolveram, da estrutura social que os leva a fazer determinadas coisas, enfim, de múltiplos fatores? Até mesmo o flerte deliberado com a glamourização de atividades ilícitas, das quais se valem, passa por prismas analíticos e críticos, principalmente porque armam espelhos capazes de mostrar nossa obscuridade.
OS ANTI-HERÓIS
Mesmo dentro da obra de um cineasta considerado clássico, como John Ford – cuja produção se deu realmente antes da Sétima Arte chegar ao moderno –, há uma enorme diferença na abordagem dos personagens principais ao longo do tempo. Basta comparar dois de John Wayne em faroestes do mestre. Em Nos Tempos das Diligências (1939), que privilegia a ação, o ator vive Ringo, altivo cowboy em fuga da cadeia à qual foi confinado por uma acusação de assassinato. Mas, o que importa é seu comportamento essencialmente heroico, inclinado ao romance com a mocinha e tudo mais. Já o protagonista em Rastros de Ódio (1956), Ethan, é alguém com várias camadas, um remanescente da Guerra Civil obviamente transformado pelas agruras do combate, capaz de atos dignos de aplausos, mas de outros indignos e sintomáticos, como brutalizar um cadáver indígena. Aliás, ele é a base de Travis, protagonista de Taxi Driver (1976), veterano do Vietnã que tenta se reinserir na sociedade, mas que será adiante celebrado pela forma como faz justiça com as próprias mãos. E aí está um bom exemplo dos que estamos falando.
É claro o verniz crítico utilizado em todo Taxi Driver – bem como em Rastros de Ódio –, com o cineasta fazendo um diagnóstico dos impropérios do protagonista a partir das modificações que a guerra fez em sua psique, distorcendo o modo como ele filtra o mundo. Também isso fica evidente na melancolia residual após Travis ser considerado um herói por chacinar bandidos. Martin Scorsese deixa muito visível que o problema está justamente numa coletividade que permite jovens serem moídos pela guerra e que depois celebra homicidas brutais como heróis. Portanto, somos convocados a participar de uma leitura ampla, menos determinadas por barganhas morais. Não é porque Travis tem gestos odiosos que Taxi Driver se transforma numa peça “cancelável” e isso se dá pelo modo como o filme esquadrinha e utiliza a controvérsia. É claro que alguns expectadores vão deturpar as ações de Travis, se apropriando de seu discurso para ensaiar coisas como “bandido bom é bandido morto”, especialmente os integrantes da fatia social à qual Scorsese busca cutucar com veemência, os incapazes de perceber que não há tanta diferença entre os homicidas. A catarse não precisa ser destituída de espaço para que, inclusive, questionemos seu impacto.
É muito diferente, portanto, do que acontece com o personagem de Charles Bronson nos filmes da saga Desejo de Matar, em que há uma valorização gritante e vergonhosa do “olho por olho, dente por dente”. O pilar narrativo dessas tramas é pura e simplesmente a validação da vingança, bem como dos demais expedientes, desde que bandidos sejam aniquilados e o “bem” prevaleça. Ora, é uma das formas mais canhestras de enfiar essa ideologia goela abaixo do público, pois Paul (Bronson) é atingido brutalmente em sua intimidade. A morte de entes queridos é apenas um salvo-conduto para que esse sujeito empilhe corpos, tendo supostamente a autorização assinada pelo luto. Não há qualquer leitura social que torne matizada essa resposta extrema, tampouco se entende o protagonista como levado por conjunturas das quais também acaba sendo vítima. É simploriamente um membro da classe média estadunidense que assume o papel de anjo vingador porque teve sua esposa e filha mortas. Apelando a noções reducionistas como “e se fosse sua filha?”, o filme acaba sendo reprovável porque endossa abertamente a violência.
CONCLUSÃO
Por exemplo, dizer que um filme é machista apenas porque apresenta personagens machistas não é muito diferente do pensamento da direita cultora da “dos valores tradicionais” de que mostrar relações homoafetivas seria uma forma de incentivar que todo mundo seja gay. Uma vez que Hollywood, e por conseguinte, boa parte das outras cinematografias, começou a se valer de anti-heróis, de pessoas nem sempre orientadas por uma conduta ilibada para contar histórias mais complexas e condizentes com a ambiguidade humana, a discussão sobre isso frequentemente vem à tona. Então, a pergunta essencial que temos de nos fazer é: o filme endossa comportamentos nocivos ou tem mecanismos internos suficientes para compreender, dentro de uma perspectiva crítica, as atitudes vistas na telona? Perceber um ato de violência como parte de uma cadeia maior, vide os de Travis em Táxi Driver, não é uma validação automática, mas o entendimento da existência de mais coisas entre o céu e o inferno do que supomos em nossos castelos cheios de regras. É preciso cuidado com as leituras, pois a cadela do moralismo está sempre no cio.
Além disso, mais do que buscar na vida privada de realizadores e realizadoras fatos que “comprovem” a aprovação de mensagens ruins, é necessário um esforço analítico para perceber de que modo elementos controversos são trabalhados na cosmologia de seus filmes. Match Point (2005), de Woody Allen, para citar um filme menos antigo de um cineasta ultimamente revisto sob os prismas de acusações que recaem sobre ele, mostra um protagonista cometendo toda sorte de crimes e saindo impune no final. Todavia, Allen não está praticando seu eventual machismo ao fazer isso, até porque inexistem sinais de celebração dos atos torpes do personagem de Jonathan Rhys Meyers. A ideia é, reprisando o que o cineasta tinha feito em Crimes e Pecados (1989) e apoiado em Crime e Castigo, livro do escritor russo Fiódor Dostoiévski, quebrar a lógica do “aqui se faz, aqui se paga”, afirmando que nem todo crime é castigado e como é amargo o gosto da impunidade. Um filme como A Casa Que Jack Construiu (2018), de Lars von Trier – outro cineasta que causa polêmica (mas ele parece gostar disso) –, promove a brutalidade, se regozijando de sua existência, ou utiliza inclusive uma lógica próxima ao deleite, em algumas passagens, para ampliar o impacto de outras e entender o espectador como membro ativo de uma construção cinematográfica? Com a palavra, vocês.
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