Opinião :: A crise de atenção do espectador ansioso e o medo do futuro

Publicado por
Marcelo Müller

Recentemente, a jovem atriz britânica Millie Bobby Brown afirmou em entrevista que não assiste a filmes, nem os que ela própria protagoniza. O motivo? A incapacidade de ficar sentada durante “tanto tempo” prestando atenção apenas numa coisa. Muitas críticas depois, vindas de fãs estarrecidos com a situação absurda de alguém que trabalha com cinema não conseguir ter prazer apreciando uma experiência cinematográfica, convido vocês a pensarem comigo: é tão surpreendente assim o que ela diz? Ou será que esse espectador ansioso se transformou numa tendência crescendo silenciosamente nos últimos anos e colocando em xeque até a forma como criadores farão o cinema das próximas décadas? Antes que alguém coloque toda a culpa numa nova geração (os 30-) de pessoas nascidas sob os signos do digital e da virtualidade, vamos fazer aquela autocrítica marota? Quantos de nós, independentemente da idade, consumimos horas de vídeos curtos no Instagram e/ou no TikTok em vez de dedicar tempo/atenção à leitura de um livro denso? As experiências com redes sociais são tão fragmentadas e nos acostumam tanto a essa forma fracionada de consumo que até leitores contumazes e apreciadores sênior de cinema têm notado uma crescente dificuldade de prestar atenção a algo divergente desse novo padrão.

Millie Bobby Brown em “Donzela”, seu mais novo filme

O presente artigo não trará tantas respostas quanto eu próprio gostaria. Já aviso. Ele está mais para uma tentativa escrita de compartilhar dúvidas sobre um fenômeno bastante complexo: o da crise de atenção característica de um espectador ansioso. Condicionados por novas formas de entretenimento, somos levados a nos acostumar demasiadamente com estímulos superficiais cada vez mais rasos e renovados em curtos espaços de tempo. Então, recostar-se na cadeira e se entregar a um bom filme que nos ocupe por, quiçá, uma hora e meia, virou tarefa custosa para nosso cérebro domesticado pela hiperestimulação constante. E essa situação tem alguns efeitos imediatos, sendo um dos principais deles a percepção dos produtores de que é preciso jogar o jogo nefasto caso queiram fisgar uma fatia grande do público. Trocando em miúdos: é uma tendência pós-moderna a oferta de estímulos em curtíssimos espaços de tempo para evitar a temida dispersão. É como se os filmes e as séries (além de muitas outras coisas) precisassem dar um choque desfibrilador na atenção do espectador sempre em vias de dispersar. Então, não é de se estranhar que muitos filmes e séries atuais sigam o princípio “mostre muita coisa, não se aprofunde em nada, pois senão o consumidor irá embora”. A longo prazo isso pode significar o fim de planos silenciosos, de signos e ícones menos claros como ferramentas cinematográficas?

Claro que essa crise de atenção do espectador ansioso não se reflete apenas no seu consumo audiovisual, pois determina toda a sua experiência perceptiva. Vamos pensar, por exemplo, dentro do universo da crítica de cinema. Por que tem sido tão comum profissionais migrarem do texto para o vídeo nos últimos anos, alguns até abandonando ótimos trabalhos de profundidade para se dedicar a comentários superficiais demarcados por uma overdose de adjetivações? Porque dentro do mundo capitalista em que vivemos, quem diverge das leis impostas pelo mercado precisa saber o preço salgado a ser pago e nem todos podem esperar um trabalho divergente das tendências germinar e dar frutos a longo prazo. Muitos têm deixado a crítica propriamente dita, embasada por conhecimento de história e linguagem do cinema, para se dedicar aos achismos ligeiros e a comentários que cabem em poucos segundos. Não estou com isso criticando o vídeo e ainda menos quem adere a ele como estratégia para sobreviver num mundo economicamente precarizado. Tampouco estou afirmando que todos os colegas críticos que utilizam o vídeo como suporte fazem trabalhos superficiais. Muito longe disso. Há propostas interessantíssimas que utilizam esse meio poderoso para oferecer leituras densas e instigantes dos filmes e das séries. A questão não é essa. É o simples dançar conforme a música tocada por esse novo espectador ansioso que tende a achar um texto com três mil caracteres longo demais.

E aí a gente cai naquela velha história: fazemos filmes/textos/vídeos cada vez mais superficiais e ligeiros para atender a uma demanda ou estamos apenas reforçando uma tendência imposta artificialmente ao consumidor nos últimos anos? Quando Millie Bobby Brown assume não assistir sequer aos próprios filmes, não está fazendo nada demais, apenas escancarando a disposição infelizmente comum entre os espectadores de enxergar como desafio hercúleo a tarefa de prestar atenção durante duas horas no universo proposto por um filme. Tudo precisa ser estímulo e entretenimento. Note como até transmissões esportivas e programas jornalísticos têm apelado às dinâmicas mais associadas ao entretenimento do que, respectivamente, ao esporte e ao jornalismo. Isso porque seus produtores/criadores sabem que qualquer queda na oferta de excitação momentânea pode significar que o espectador pegou o celular para receber as doses de estímulo faltantes para aplacar a sua percepção viciada. Não à toa, formamos uma sociedade com tantas patologias mentais associadas à ansiedade. Diante desse panorama apocalíptico, o que esperar do futuro? Que a hiperestimulação atinja um paroxismo e escancare crises ainda maiores? Que filmes/textos/vídeos sejam condenados a uma existência superficial, sob a pena de ostracismo e obsolescência imposta aos que seguirem tentando nos sensibilizar de outras maneiras, menos apressadas, e apostando ainda nas nossas inteligência e curiosidade?

Talvez seja uma postura utópica, diante da facilidade de estímulos pouco exigentes, convocar o espectador/leitor a uma tomada de consciência – aliás, certamente muitos nem chegaram ao presente parágrafo deste texto, alguns por terem se desinteressado genuinamente pela prosa trôpega do autor, outros simplesmente por terem a atenção dispersada. Fazemos parte de uma sociedade que celebra o sujeito multitarefa, dono da capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo. No âmbito profissional, isso responde a um mecanismo de dominação, à recompensa ao funcionário que “se vira nos 30” para dar conta de múltiplas missões simultaneamente e com isso aumentar a sua produtividade. Enquanto consumidores de conteúdo, isso nos coloca, inevitavelmente, nos patamares da superficialidade. Sem a devida atenção, somos alienados de nuances, complexidades, tendemos a nos interessar somente por aquilo que está dado de bandeja e ainda corremos o risco de perder a curiosidade, atributo que faz a humanidade avançar. Como crítico de cinema, me preocupa essa situação que empobrece uma área de conhecimento tão instigante, a reduzindo a listas de indicações e comentários ultra adjetivados – afinal de contas, todos precisamos de engajamento. Pergunto-me que tipos de filmes terão espaço e, por consequência, os que perderão ainda mais terreno nesse cenário distópico no qual a atenção é tratada como um paciente terminal precisando de reanimação a cada dois segundos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.