As medidas de distanciamento social impostas pela pandemia do Covid-19 impactaram de forma múltipla e feroz a cadeia cinematográfica. Durante uma quantidade enorme de tempo, produções tiveram de ser interrompidas e até mesmo o simples ato de ir aos cinemas ficou totalmente interditado. Aos poucos, contudo, há o ensaio de uma normalidade sendo desenhada, embora esse famigerado “novo normal” de habitual tenha quase nada. Devagar, artistas e técnicos voltam aos sets de filmagens, condicionados por uma série de medidas, restrições e afins. Já quanto às salas de cinema, mesmo sem medidas que isentem o programa do risco de contágio, há quem defenda reaberturas imediatas. Fato é que, independentemente das leituras de cada um – entre apocalípticos e otimistas –, o cinema brasileiro está longe de encontrar uma solução na volta às salas de cinema. Antes mesmo da pandemia, era tarefa hercúlea garimpar espaço num circuito tomado pelo produto estrangeiro, desregulado por um governo indisposto diante de qualquer inclinação protecionista. E o streaming pode ser um aliado nesse momento duro.
Talvez nem mesmo o mais esperançoso e efusivo dos defensores da reabertura imediata dos cinemas consiga elementos suficientes para fincar posição partindo da enorme necessidade dos filmes brasileiros nascerem. Boa parte das produções financiadas parcial ou integralmente com dinheiro público, via Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) ou outros mecanismos de incentivo, tem por obrigação estrear nos cinemas, assim chamados de “primeira tela” pela ANCINE, a Agência Nacional do Cinema. Então, imediatamente, é claro que tem muitas produções esperando ansiosamente a volta às atividades dos espaços importantes à cadeia de exibição. Porém, contudo, entretanto, todavia…alguém aí acredita que haverá cessão de terreno a filmes brasileiros nesse instante de retomada, sobretudo diante de um panorama de demanda reprimida de longas de médio e grande porte com o selo de Hollywood? Se os exibidores faziam jogo duro diante das demandas do cinema brasileiro antes da pandemia (com raras e bem-vindas exceções), por que agora, justamente quando precisam recuperar-se financeiramente, essa mentalidade seria diferente? Diante dessa constatação meio óbvia, temos duas coisas a resolver: a legislação e o preconceito.
Recentemente, a ANCINE considerou emergencialmente Drive-in como “primeira janela”, ou seja, os filmes com fomento público podem ser lançados neles sem prejuízo à prestação de contas. Já é um passo? Sem dúvida, mas também é bom ler nas entrelinhas, não se contentando apenas com a manchete. A lista de exigências imposta aos estabelecimentos que desejarem ser palcos de produções inéditas brasileiras acaba tirando desse circuito possível boa parte dos Drive-in. Nem todos têm à disposição projetores de alta performance ou a possibilidade de trabalhar com lançamentos. Mas, a mudança circunstancial poderia abrir espaço a uma discussão ampliada acerca das diferentes possibilidades de “primeira janela”. Pois, repito consternado, salas de cinema sempre apresentaram receptividade abaixo do desejado ao produto nacional. Das duas uma: ou o Estado cria medidas protetivas ao filme brasileiro (o que não parece uma possibilidade para esse governo desarticulador e não articulador) ou flexibiliza as regras para que não mais vejamos estreias protocolares para “cumprir tabela”, como se diz no jargão futebolístico. O momento não parece oportuno para isso, mas é preciso debater a questão profundamente e com seriedade.
Vamos imaginar que Jair Bolsonaro e companhia foram atravessados por um raio e, de uma hora para outra, resolveram pensar responsavelmente o cinema brasileiro. Caso uma eventual possibilidade de lançamento direto em streaming para obras com incentivo estatal fosse integralmente aprovada, seria necessário lidar com certo preconceito vigente. Sim, pois poucos cineastas parecem dispostos a aceitar que seus filmes não passem pelas telonas. Exceções recentes, tais como o lançamento de Breve Miragem de Sol (2019) e o vindoura estreia de Três Verões (2019) virtualmente mostram disposições esparsas para quebrar o paradigma. Óbvio que bate uma sensação amarga ao simplesmente pensar em planejar o nascimento de um filme sem ter como manjedoura (aí fui longe na metáfora bíblica) a nossa sagrada telona e sua irmã, a sala escura. O sabor rançoso também é fruto da consternação que eu não gostaria de estar aqui ventilando. Mas, sejamos práticos: é preciso que nossos filmes circulem, que ocupem espaços, que sejam vistos, debatidos e que ganhem o mundo. Seja na telinha ou na telona. É preciso.
Uma vez que o streaming parece uma janela incontornável, de amplo alcance, a despeito dessa tristeza, não seria melhor começarmos a pensar de que maneiras podemos ocupa-lo? A pandemia também trouxe a necessidade de festivais online, atualmente acontecendo aos borbotões, em meio aos quais filmes ganharam uma visibilidade que certamente não teriam caso limitados a uma ocasião fisicamente exclusiva. Por um lado, nada substitui a energia de estar num festival de cinema e confraternizar em torno dos filmes. Saudade, minha filha. É um troço lindo. Porém, não dá para negar que há algo de muito bonito nessa democratização que o online permite. Por exemplo, ao invés de termos Sertânia (2020), obra-prima de Geraldo Sarno, exibida apenas no Rio de Janeiro durante o 4º Festival Ecrã, ele circulou o Brasil via versão remota do evento. Foi amplamente visto, comentado, reverberado, do interior do Rio Grande do Sul ao extremo norte do país. Será que alguns festivais conseguirão não ter versão online num futuro? A capilaridade do virtual dá o que pensar frente à necessidade urgente de fazer os filmes serem efetivamente vistos. Então, refaço a pergunta que intitula este artigo: será a hora e a vez do cinema brasileiro no streaming?
O presente artigo não se trata nem de uma defesa, tampouco de um ataque. Acredito que precisamos pensar profundamente as estratégias de lançamento para que, antes de qualquer coisa, os filmes brasileiros ganhem a projeção merecida. Sei que tal sinalização pode parecer uma desistência diante da desigual briga por espaço no circuito dos cinemas. Não é realmente a intenção. Todavia, não é de hoje que a maior fatia do cinema brasileiro é mal lançada, às vezes atirada no circuito em horários pouco convidativos. Precisaríamos de uma política profunda de incentivos ao exibidor que privilegiasse o cinema brasileiro? Sem dúvida, e isso ajudaria demais nessa luta inglória. Parece razoável que isso aconteça agora, com o atual governo, e a considerar a pressão histórica que os produtores estrangeiros exercem sobre o nosso mercado exibidor? Infelizmente não. Não mesmo. O cinema brasileiro não tem apenas um problema. Ele possui vários. Desinformação, sucateamento, falta de políticas condizentes com o retorno artístico e econômico da classe. Por isso, é plausível (urgente?) olhar com menos restrições ao streaming.
Claro que há muito mais caroço nesse angu. Não sejamos inocentes nessa hora determinante. De um lado, a dependência de fomentos estatais, do bom humor dos políticos e da capacidade de engajá-los à ideia de que Cultura não se trata de um bem social menor. De outro, a noção excludente/precária de que o mercado deveria ser eleito como juiz e executor, ou seja, determinando quem sobrevive, perdura ou morre. Nada, NADA, evidentemente, vai substituir a experiência na sala de cinema. Mas, não me parece igualmente produtivo ficar dando murro em ponta de faca em prol do nosso saudosismo. Uma vez que produtores, realizadores e afins tiverem mais opções, eles mesmo traçarão suas estratégias de lançamento. Na sala de cinema, no streaming, nas mídias físicas, o importante é que nosso cinema circule e não fique restrito a uma experiência feita para poucos. Isso me soa absolutamente vital.
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