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É interessante que os melhores filmes para pensarmos a pandemia tenham sido feitos muito antes de qualquer sinal da Covid-19, e não façam menção a doenças ou vírus. As histórias com conexões mais próximas ao ano de 2020 provêm do confinamento obrigatório dentro da própria casa. O cinema fantástico e de terror está repleto de experiências a princípio pacíficas, onde um pequeno incômodo se intensifica até despertar a selvageria rumo ao final. O lar pode proteger e dar conforto, ou então servir de prisão para pessoas de relacionamento conflituoso. No início de agosto, quando o Brasil ainda contabiliza mais de 1.200 mortes por dia, parte considerável da população e dos governantes decidiu estabelecer um acordo tácito pelo fim da quarentena. Vamos logo para as ruas, vamos fingir que o pior já passou – em outras palavras, vamos adequar o real às nossas vontades, porque a experiência cotidiana é dura demais a suportar. Assim, a sublimamos. Vivemos num mundo onde nunca houve doença de fato: era só uma gripezinha passível de cura com remédio barato.

 

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Viveiro

 

Para quem permaneceu, e ainda permanece em casa, seja por opção ou falta de opção, a experiência de passar quatro meses num local isolado abala alguns pilares da solidez psíquica. Talvez por estar condicionado a pensar neste tema, ou porque o cinema constitua o veículo ideal para representar situações extremas, começo a identificar metáforas da pandemia em diversos filmes a que assisto. Em Viveiro (2019), ficção científica de Lorcan Finnegan, um casal de namorados de classe média-baixa visita uma casa planejada nos subúrbios norte-americanos, sem intenção real de adquirir o imóvel. Quando exploram o local, percebem que o assustador agente imobiliário desapareceu, e eles não conseguem mais abandonar a casa. As ruas ao redor são labirínticas, conduzindo de volta ao imóvel cercado por casas idênticas e vazias. Não há vizinhos, amigos, conhecidos. Tom (Jesse Eisenberg) e Gemma (Imogen Poots) passam a morar na casa asséptica, esperando algo acontecer lá fora. Não acontece. Eles estão presos, ainda que a porta esteja aberta. Há algo assustador, porém invisível, lá fora. O casal sente o controle externo sobre seus corpos, restando ficar entre quatro paredes, levando uma vida miserável, insossa, repetitiva. O sonho da casa própria se torna um inferno sem fim.

Premiado em vários festivais de cinema, o argentino Pedra, Papel e Tesoura (2019), dirigido por Macarena García Lenzi e Martin Blousson, apresenta a convivência forçada entre três irmãos na casa da família. Jesus (Pablo Sigal), Maria José (Valeria Giorcelli) e Madalena (Agustina Cerviño) levam uma rotina de provocações e ameaças veladas. A câmera jamais abandona o local envelhecido, embolorado, com papéis da parede por todos os cômodos – e os personagens também não. Aos poucos, os segredos do passado vêm à tona, os desafetos são revelados, e a conclusão, como esperado, se traduz em carnificina. O local de aparência inofensiva converte-se em palco de crimes. Sem estragar a surpresa, é possível dizer que Viveiro também encontra escapatória exclusivamente através da morte. Em ambos os casos, a permanência em casa catalisa problemas preexistentes, ignorados em nome da cordialidade. Quando não podem mais ser tolerados, tornam-se estopim para a barbárie. Nestas narrativas, as quarentenas infinitas não criam conflitos, apenas os revelam. Pela lógica do cinema-catástrofe intimista, transparecemos quem realmente somos em momentos de crise.

 

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Pedra, Papel e Tesoura

 

No entanto, as produções capazes de espelhar 2020 também datam de muitas décadas atrás. O Anjo Exterminador (1962), clássico do surrealismo, se passa durante o jantar refinado da burguesia mexicana. Ao concluírem a noite, uma dezena de amigos percebe que não conseguem sair do local. A porta está aberta, não há qualquer ameaça decifrável lá fora. Sem entenderem o porquê, veem-se confinados a dois cômodos, que antes pareciam espaçosos, e de repente se tornam inóspitos. Longe da cozinha, os casais não têm comida nem água. O que fazer quando precisam ir ao banheiro? E a vontade do sexo entre amantes desesperados pelo contato físico? Gradativamente, as pessoas refinadas começam a cheirar mal, transpirar, gritar, chorar. Elas bebem a água dos vasos, guardam seus excrementos e cadáveres literalmente no armário. O mesmo local do agradável jantar entre amigos adquire um caráter de pesadelo devido ao acréscimo do tempo: a restrição da liberdade e a diminuição do luxo converte pessoas civilizadas em monstros. Sem surpresa, a narrativa se conclui com mortes, tentativas de estupro e ataques à Igreja Católica – nada surpreendente para um filme de Luis Buñuel.

Em Repulsa ao Sexo (1965), Roman Polanski coloca Catherine Deneuve na posição de mulher histérica e fóbica. Incomodada com a presença da irmã no quarto ao lado, fazendo sexo com o namorado, passa a imaginar que o rapaz poderia estuprá-la, assim como os demais homens da região. Quando a irmã viaja, Carol se tranca em casa, coloca barreiras contra a porta, fecha as janelas, corta o fio do telefone. Em determinado momento, imagina braços humanos saindo das paredes do corredor, em aspecto pegajoso, prestes a agarrá-la. Não há maneira de escapar à sexualidade, ao desejo e nem à vida em comunidade. Neste caso específico, a permanência em casa apenas ressalta a libido da mulher, o medo de ser violada e a percepção do outro como inimigo a ser domado. A solução encontrada pela personagem, fora de si, consiste no assassinato – na cabeça de Carol, ela está agindo em legítima defesa. O espaço limitado potencializa tendências psicóticas que a mulher já mantinha reprimidas, e fortemente perturbadas pela sexualidade livre da irmã.

 

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Repulsa ao Sexo

 

Estas narrativas possuem em comum a ideia do medo produzindo violência. Nenhum destes personagens está literalmente preso em casa: as portas estão abertas, e eles poderiam sair se quisessem, ou melhor, se pudessem. Há um perigo invisível lá fora, que não possui nome nem descrição, e que os conduz à barbárie. Os comportamentos constituem um exagero fictício, porém simbólico da dificuldade de trancafiar desejos e corpos, sabendo que há outras experiências possíveis no espaço externo. Curiosamente, algo nestas distopias íntimas representa alguma forma de concretização de um sentimento, de uma pulsão. O pacto brasileiro pelo direito à alienação se torna ainda mais irresponsável por partir de uma política do recalque, no caso dos indivíduos, e da desresponsabilização perversa, no caso dos governantes. Em plena pandemia, o perigo lá fora é real. Ele se mantém invisível a olho nu, e nos força a uma convivência nada agradável – ou mesmo monstruosa – dentro das nossas casas. No entanto, enquanto Tom, Gemma, Jesus, Maria José, Madalena, Carol e os burgueses mexicanos lutam para exterminar a ameaça, ainda que simbolicamente, nós decidimos imaginar que ela jamais aconteceu. Por caminhos distintos, nos aproximamos dos delírios psicóticos destes personagens presos, porque o nosso cárcere é levado para as ruas. Ao fecharmos os olhos para a sociedade o redor, nunca saímos de fato do lar.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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