Atualmente, o Brasil constitui um dos principais epicentros mundiais da pandemia de coronavírus. Atingimos, até 9 de julho, 1,75 milhão de casos e 69 mil mortes registradas, sem contar a alta taxa de subnotificação. Mesmo assim, governos dos maiores Estados e cidades autorizaram a reabertura de restaurantes, shopping centers, academias, salões de beleza. O presidente que chamava a doença de “gripezinha” hoje redireciona os seus esforços à propaganda de um remédio sem eficácia. Ao reabrir o comércio, o prefeito de Itabuna afirmou: “Morra quem morrer”. Mídias alinhadas ao governo, como o grupo Record e a Gazeta do Povo, sugerem que os números são de fato menores do que os anunciados, e preferem se concentrar na taxa de recuperados ao invés de mortos ou contaminados. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, declarou que o coronavírus consiste num “plano comunista” dos chineses.
Enquanto as autoridades minimizam a importância das mortes e os brasileiros retomam as ruas, o país adquire uma aparência de normalidade. Ainda morrem pessoas, todos os dias, mas esta notícia é velha, não? Por que me incomodaria com isso se nenhum ente querido figura entre as vítimas? No início da pandemia, os casos registrados na Itália geravam uma comoção geral. Hoje, ultrapassamos os dados registrados pelos italianos, porém o incômodo diminuiu. Conforme atestaram sociólogos, psicólogos e jornalistas, acabamos por normalizar a morte. Não nos perturbamos com a ideia de tantos anônimos morrendo. Parte do fenômeno pode ser imputada à nossa dificuldade de abstração: quem consegue imaginar mentalmente a diferença entre 60 mil e 69 mil pessoas? A partir de certo ponto, a nossa visualização de um grupo se torna indistinta: 60 mil, 70 mil, 90 mil, 150 mil pessoas seriam quantidades equivalentes – seriam “muito”, “bastante”. O cansaço relacionado à quarentena, ao isolamento social, as pressões físicas, psicológicas e financeiras favoreceriam este atalho argumentativo. Queremos tanto sair de casa que minimizamos a catástrofe invisível.
No entanto, outra parte deste comportamento pode ser atribuída à ausência de imagens sobre a morte. O assassinato brutal de George Floyd nos Estados Unidos gerou uma revolta ainda maior pelo fato de o crime ter sido gravado por diversas pessoas, ao vivo, que testemunhavam o ato injustificável de policiais racistas. No Brasil, a morte do menino João Pedro certamente teria despertado uma revolta mais intensa caso houvesse algum registro dos tiros disparados contra o corpo da criança. O mesmo valeria para os assassinatos de Marielle Franco e Anderson. Nos Estados Unidos, Barack Obama enfrentou uma dura decisão após o assassinato de Osama Bin Laden: deveria divulgar a foto do cadáver ensanguentado? O então presidente preferiu manter a imagem em sigilo. Segundo a descrição de oficiais, tamanho choque poderia provocar a dessolidarização com os oficiais que executaram o líder terrorista. Tivemos que nos contentar com a imagem da imagem, ou seja, a fotografia da cúpula do governo norte-americano observando horrorizada a imagem de Bin Laden, protegido dos olhos do público.
Isso ocorre pelo aspecto de verdade e proximidade do real decorrentes da natureza da imagem. Esta constitui a essência da fotografia e do cinema: por mais que se possa alterar fotos, fraudar imagens e incluir efeitos visuais – vide a disseminação em massa de fake news com objetivos políticos -, ela guarda uma aparência de real, uma sugestão de que, em algum momento específico, a câmera e o objeto retratado conviveram no mesmo espaço, testemunharam o mesmo local e os mesmos fatos. No que diz respeito à Covid-19, a banalização das mortes é favorecida pela dificuldade de representá-la. Ao contrário da sugestão de Jair Bolsonaro, é ilegal entrar em hospitais e ambulatórios para fotografar doentes, não apenas pelo direito à privacidade e ao sigilo médico, mas pelo óbvio risco de contágio. A quarentena impôs que as pessoas ficassem em suas casas, distantes umas das outras, sem poderem visitar os parentes e amigos doentes. Diversas vítimas de coronavírus e de “insuficiência respiratória grave” não foram vistas, fotografadas, compartilhadas nas redes sociais. Foram lembradas por alguns, contadas por outros e quantificadas pelos jornais, enquanto os governos divulgavam notícias em contrário para diluir a gravidade dos fatos, ou ao menos despertar dúvida sobre os mesmos.
A imagem de cadáveres provoca não apenas repúdio e medo, mas curiosidade, e mesmo fascinação. Quando há um acidente na estrada, os carros desaceleram para os passageiros verem de perto as vítimas. Programas sensacionalistas sobre crimes na televisão aberta exploram casos de assassinatos, suicídios, parricídios. Brigas sangrentas nas ruas ou bares levam a rodas de anônimos em volta dos gladiadores, esperando pelo desfecho trágico. A morte, horizonte certeiro sobre o qual tentamos não pensar, se concretiza em casos do tipo enquanto fetiche. Experimentamos de perto a morte, porém na segurança dos nossos carros, à distância da briga ou no conforto do sofá de casa, enquanto as fotografias de pessoas desfiguradas desfilam pela televisão. Queremos saber como acontece, afinal, a morte: como nos sentimos ao perder a vida, ou retirar a vida de alguém? Falamos pouco sobre a morte, criamos um tabu, um mistério, uma aura de desconhecimento. Na literatura, Crime e Castigo, de Dostoievski, se dedica ao prazer imotivado de assassinar outra pessoa, para ver como seria. Devido à ausência de motivação pelo crime, o protagonista acredita ter efetuado o crime perfeito, para descobrir então as falhas de seu raciocínio.
No cinema, Luis Buñuel criou um herói esquecido, porém excelente para refletirmos sobre os nossos tempos: Archibaldo de la Cruz, protagonista de Ensaio de um Crime (1955). Este homem sonha em matar alguém, qualquer um, para conhecer a experiência da morte. No entanto, sempre que escolhe a vítima perfeita, ela morre por outros motivos, levando Archibaldo a acreditar no poder de eliminar pessoas mentalmente, pela vontade de fazê-lo. Não por acaso, o cinema surrealista fornece algumas das melhores metáforas par tempos de crise, e Buñuel também teria muito a dizer sobre a contemporaneidade a partir de O Anjo Exterminador (1962) e O Discreto Charme da Burguesia (1972). O mesmo valeria para David Cronenberg no cinema fantástico, e Naomi Kawase no registro naturalista. Através da representação, o cinema pode nos fornecer a simulação verossímil da morte, com a mesma cautela dos motoristas passando por acidentes reais. Ninguém quer morrer, mas todos desejam conhecer, de um modo ou outro, a experiência da morte.
O terror fornece inúmeras possibilidades para tais sensações. As penetrações de facas, machados, ganchos e arpões nos slashers confirmam o teor erótico da morte – compreendido enquanto abandono da racionalidade em nome da entrega a pulsões. Enquanto isso, o cinema sobre tortura, como Jogos Mortais (2004 – 2021) e A Vingança de Jennifer (1978), nos permitem justamente atingir a impessoalidade da morte, ou ainda a justificação moral do assassinato. Ninguém se sente particularmente triste quando os coadjuvantes de Jogos Mortais morrem, porque não somos convidados a nos identificar com eles. Torcemos pelo vilão, e pela concretização da matança prometida no gênero. Quando Jennifer é estuprada e se vinga de maneira brutal dos criminosos, aplaudimos a carnificina: nascem então os rape and revenge films, a possibilidade de matar alguém justamente, sem nos se sentirmos culpado por isso como Archibaldo ou Raskolnikov. No cinema, somos perdoados por desejar a morte de alguém, ou por não nos importarmos com seu destino. Estamos protegidos pelo preceito da ficção: sabemos, lá no fundo, que os atores não morreram de fato.
Isso não significa sugerir que amantes de filmes de terror sejam pessoas particularmente violentas, propensas a matar outros. Esse argumento seria o equivalente do raciocínio falacioso segundo o qual videogames de tiros estimulam massacres em escolas, ou cenas de sexo no cinema encorajam jovens a perderem a virgindade mais cedo. A psicologia humana funciona de maneira muito mais complexa do que isso, e o mesmo vale para a representação em imagens. Uma prova disso é o fato que não mostrar a morte, porém sugeri-la, pode resultar num efeito muito mais potente do que qualquer cadáver coberto de sangue. Michael Haneke, um dos cineastas que domina com maior destreza o hors champ, ou seja, o espaço fora do enquadramento, utilizou diversas vezes a sugestão da morte ou da violência pelo som: em O Vídeo de Benny (1992), o importante assassinato de uma adolescente ocorre fora do enquadramento. Apenas as pernas da menina são vistas na imagem, enquanto os gritos ecoam na gravação. Em Código Desconhecido (2000), Juliette Binoche escuta a vizinha ser espancada no apartamento ao lado. Nestes casos, somos obrigados a projetar nossas próprias imagens a partir das sugestões sonoras disponíveis: o imaginário de agressões será diferente conforme a experiência de cada espectador.
A nossa mistura de obsessão e ojeriza pela finitude se esclarece a partir de uma distinção essencial: a morte não constitui o contrário da vida, e sim o contrário do nascimento. A vida constitui tudo o que ocorre entre os dois. Independentemente de se acreditar na pós-morte, a morte em si representa um momento pontual e imprevisível rumo ao qual todos caminhamos. Memento mori, diz o latim: lembra-te que morrerás. O brasileiro, diante das notícias longínquas sobre o número crescente de mortes, prefere sublimar os fatos e se estimar ainda mais invencível, mais forte por causa da pandemia: tantas pessoas morreram, mas eu, veja só, não sofri nada. Ou ainda: muitas pessoas tiveram problemas respiratórios, mas no meu caso, os sintomas foram leves e passageiros. Desenvolve-se então a perda de empatia, a projeção na crise sanitária o desejo de superação de si. Se eu não quiser que a crise seja realmente grave, ela não será. Sim, ainda há algum risco, mas não dá para ficar sem cortar os cabelos, né? Já fiquei tanto tempo em casa que agora basta, não? Afirmações do gênero sugerem que o indivíduo possui plena consciência do que deveria responder para não ser repudiado ou “cancelado” – no caso, uma vaga constatação do problema. No entanto, a pessoa reafirma a sua prioridade: a sua própria vida, sua vontade, seu desejo. Temos uma vontade perene de nos sentir especiais, diferente dos demais, melhor do que eles. Se não têm pão, que comam brioches. Se não têm vírus, que frequentem o shopping center.
As pessoas que tiverem perdido entes queridos, testemunhado a falta de ar, a dor no corpo, o enfraquecimento súbito, terão uma imagem muito diferente do coronavírus daqueles que se informam pelo noticiário e das redes sociais. Conhecemos a aparência de uma vítima de câncer terminal, possuímos um imaginário coletivo sobre corpos baleados, corpos debilitados, corpos entubados e ligados por aparelhos. A morte por decorrência da Covid-19, no entanto, não possui uma imagem, uma gravação, um caso emblemático. Ela pertence ao mesmo tempo ao mundo inteiro e a ninguém. Dizem que é gravíssimo, mas também dizem que se trata de exagero. Em sua primeira experiência com uma pandemia global, o século XXI, marcado pela necessidade da imagem enquanto autoafirmação, comprovação de veracidade e construção de narrativa, se confronta à ausência de representação, e à consequente dificuldade de trabalhar conceitos e ideias. Dependentes da relação direta entre a referência e o referente, tornamo-nos seres menos intelectuais e argumentativos. Neste sentido, nenhum filme espetacular sobre vírus mortais retrata adequadamente a dificuldade de atravessar uma crise. Não conseguimos conceber a morte, e agora, também não conseguimos vê-la. Esta doença revela muito mais do que as falhas de nossos governos: ela transparece a perda de referências do sujeito contemporâneo autocentrado, consumido pela necessidade de satisfazer seus prazeres diários e incapaz de enxergar no outro uma identidade equivalente à sua.