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Fest Aruanda 2021 :: A saudade dos familiares distantes (Mostra Competitiva Nacional de Curtas-Metragens)

Publicado por
Bruno Carmelo

É possível que nossos olhos estejam viciados devido ao tempo prolongado de convivência com a Covid-19. No entanto, o 16º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro impressiona pela maneira como os curtas-metragens da Mostra Competitiva Nacional se focam em separações dolorosas em relação a familiares e entes queridos. Certo, muitos desses projetos nasceram e se concluíram antes de qualquer sinal de pandemia no horizonte. No entanto, eles refletem o ar dos tempos, e graças ao recorte da curadoria, têm estes traços potencializados pela proximidade com os demais. Dos doze títulos que compõem a mostra, nove deles fazem menção explícita aos sentimentos provocados pelo afastamento entre pessoas que se amam, enquanto os três restantes podem, de modo metafórico, se encaixar nesta perspectiva.
No potiguar Sideral (2021), de Carlos Segundo, a mãe de duas crianças decide partir num foguete rumo ao espaço. A viagem deve durar dois anos, e na volta, ela será presa pela atitude ilegal. A fantasia se presta a um olhar tragicômico devido ao desgaste psicológico deste núcleo humilde, embora o autor preserve a seriedade e a atmosfera de melancolia. A personagem poderia ter saído para comprar um maço de cigarros e nunca mais voltado, seguindo o imaginário tradicional do abandono. Entretanto, ela executa um ato mais espetacular, que resulta tanto num orgulho quanto numa vergonha; um motivo para a empolgação e a tristeza. “O que eu vou fazer com esses dois?”, pergunta o pai desolado diante das crianças pequenas.

Sideral, de Carlos Segundo

Em Foi um Tempo de Poesia (2021), Petrus Cariry reflete a respeito da perda do padrinho, o poeta Patativa do Assaré, enquanto busca reencontrá-lo nas imagens de arquivo e nos textos do artista. A trajetória de ambos se funde: testemunhamos tanto a diversão do homem adulto num carrossel quanto o pequeno Petrus sentado em seu colo. Se o Super-8 consiste na ferramenta de união audiovisual para o cineasta cearense, no caso do baiano Coleção Preciosa (2021), são os recortes de jornal e fotogramas de películas antigas que propõem a aproximação cinéfila e metalinguística. Rayssa Coelho e Filipe Gama mergulham na coleção de Ferdinand Willi Flick ao longo de cinco décadas, numa chave mais afetiva do que propriamente historiográfica: sabemos pouco, ao final, da preciosidade do material reunido. O que conta, em ambos os casos, é o carinho nutrido entre diretores e seus temas.
Outros casos tornam este vínculo ainda mais explícito. Ele Tem Saudade (2021) ostenta a separação no título, começando pelo rapaz que, em plena ditadura distópica, faz uma chamada de vídeo com os familiares. Ao acolher um sujeito em seu bunker protegido (o próprio cineasta João Campos), é obrigado a enxergar no intruso um equivalente de si mesmo. A cena do jovem caído no chão, dominado pelo hóspede, reflete uma cena-chave de Cabidela’s Bar (2021), onde o filho pródigo, retornando à casa, confronta-se à figura paterna envelhecida, de audição prejudicada. O instante em que ambos caem, apesar de desengonçado em termos de montagem, reflete a vontade de aproximá-los de maneira fusional, num enlace próximo do encontro amoroso. “Eu te amo, pai”, dispara o rapaz. Para o cineasta Tadeu de Brito, o reencontro se torna tão físico quanto violento, literal. 

Foi um Tempo de Poesia, de Petrus Cariry

A propósito de enlaces amorosos, Hortelã (2021), de Thiago Furtado, se inicia com o abraço entre dois namorados nus na piscina. O relacionamento sofre uma ruptura em seguida, e a mãe conservadora lamenta tanto a ausência do pai (que estimava ser o responsável por incutir virilidade no filho) quanto a proximidade da empregada doméstica de pensamentos progressistas. Assim, trata de afastar esta “má influência” do garoto, que sente a falta da figura materna. Uma fotografia convenientemente retirada do móvel da sala representa bem a distância forçada, artificial. Além disso, sublinha a diferença de raças e de classes, essencial no filme piauiense e nos curtas desta mostra em geral.
O Pato (2020) se concentra na luta silenciosa de uma mulher, vítima de abuso doméstico, contra o marido. O sujeito está ausente da quase integralidade das sequências, e quando aparece, jamais tem seu rosto exposto. No entanto, as marcas no corpo da esposa e o sofrimento diário traduzem a dor desta mãe, visando poupar a filha pequena de um futuro semelhante. O diretor Antônio Galdino busca uma atuação fortíssima neste curta-metragem paraibano, aproximando sua atriz de uma guerreira vingativa. 

O Pato, de Antônio Galdino

As violências de classe e de gênero ganham tratamento poético em Inventário do Corpo (2021), onde Alini Guimarães e Jhonatan Bào recorrem à dança e à performance dentro de uma casa para evocar a luta de mulheres negras e a escravidão contemporânea. “Esses brancos do caralho” são devidamente denunciados pela exploração de uma empregada doméstica, ao passo que a solução decorre da arte, capaz de “banhar a memória, dançar a memória, registrar a memória”.
Os brancos não são tão perversos assim em Entre Muros (2021), no entanto, reproduzem o comportamento de classe aprendido com os pais. Dois garotinhos elitistas fazem chacota do menino negro que estimam ser o novo morador do condomínio de luxo onde vivem. A dona da casa está distante, a mãe se encontra no cômodo ao lado, fazendo a faxina, e o pai não existe, conforme o garoto relembra ao porteiro. Para o diretor Gleison Mota, as principais dores estão fora do enquadramento, evocadas por acenos, muros, olhares de crianças num terreno muito mais sedutor e divertido do que a pequena quadra protegida do condomínio chique.

Animais na Pista, de Otto Cabral

Algumas perdas de familiares e amantes se tornam ainda mais traumáticas, espetaculares. O paraibano Animais na Pista (2021), de Otto Cabral, oferece uma longa dança da câmera em plano-sequência para revelar um acidente de carro resultando em morte. O referencial, neste caso, se encontra no blockbuster estrangeiro, na jornada da imagem marcada por luzes piscantes, trilha sonora intensa, muitos objetos, atores e ângulos coreografados às necessidades do dispositivo. O virtuosismo se opõe à simplicidade do paulista Aurora: A Rua que Queria Ser um Rio (2021), de Radhi Meron.
A animação familiar empresta sentimentos e uma voz maneirista à rua-título, que lamenta a gentrificação, a substituição das pessoas por carros, e a transformação brutalizante dos espaços urbanos. As avenidas se acinzentaram, adquiriram traços impessoais, maquínicos. Através de uma colagem de diversos estilos de animação, o autor antropomorfiza a heroína para imaginá-la ganhando vida novamente através do rio e dos peixes. O projeto efetua um raro esforço de levar ao público familiar uma crítica poética à transformação das cidades, com destaque para a imagem de cinema de rua, precarizado e fechado, onde se observa o cartaz antigo de Matou a Família e Foi ao Cinema (1991).

Yabá, de Rodrigo Sena

Talvez o caso mais flagrante de distanciamento venha do potiguar Yabá (2021), de Rodrigo Sena. Neste caso, nenhuma relação afetiva concreta é possível — nem nos moldes da fantasia de Sideral, da distopia de Ele Tem Saudade, do romance de Hortelã, da vingança de O Pato. Neide, personagem complexa e fascinante, afasta os pescadores que buscam intimidade e os amigos do vilarejo, enquanto sonha em trazer novamente os peixes, os clientes e as divindades com quem dialoga em suas preces. Trata-se da comunicação solitária numa história de final brusco, para que o possível desfecho ocorra apenas na cabeça do espectador.
As separações ocorrem sem tintas melodramáticas ou referenciais em excesso — a maioria dos artistas busca metáforas para representar a dor interna. Os inimigos estão ausentes, e as crises se tornaram crônicas: quando as histórias se iniciam, os peixes de Yabá já estão contaminados, a ditadura de Ele Tem Saudade existe há tempos, o amor em Hortelã está condenado ao fracasso. Nos documentários, os biografados são falecidos e/ou ausentes nas imagens. A lógica do distanciamento, seja crítico ou emocional, termina por oferecer uma coletânea melancólica de filmes.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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