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Opinião :: A verdade sobre as visualizações da Netflix

Publicado por
Francisco Russo

De tempos em tempos, surgem números superlativos referentes a algum sucesso da Netflix. A Máfia dos Tigres (2020) teve 64 milhões de visualizações. A quarta temporada de La Casa de Papel (2017 – 2020), 65 milhões. The Witcher (2019) alcançou 76 milhões. O recente Resgate (2020) teria chegado a 90 milhões, em apenas quatro semanas na plataforma de streaming. Números robustos como estes sempre chamam a atenção, refletindo em inúmeras notícias internet afora e realçando uma imponência tão desejada, em termos de imagem. Mas, é sempre bom ressaltar, tal número está longe de significar que seja esta a quantidade de pessoas que assistiu a determinado filme ou série.

“Resgate”, o atual líder no ranking de visualizações da Netflix

 

Em janeiro de 2020, a Netflix alterou a forma como contabiliza suas visualizações. Desde então, basta assistir a dois minutos de qualquer filme ou série para que uma visualização seja acrescida, no que a plataforma de streaming chama de “choose to watch”, ou escolha em assistir. Ou seja, tal métrica não se refere a quem realmente assistiu a todo um filme ou série, mas apenas a quem resolveu dar uma chance, a famosa espiadinha.

Usemos como exemplo as 90 milhões de visualizações de Resgate. Como o filme estrelado por Chris Hemsworth possui 116 minutos, basta ver 1,72% de sua duração para já contar uma visualização. No caso de séries, o percentual cai ainda mais: basta ter visto 0,42% de toda a temporada de The Witcher para que a saga com Henry Cavill ganhe sua desejada visualização. E por aí vai.

Henry Cavill em “The Witcher”, líder entre as séries na Netflix

 

Por mais estranha que seja, há uma lógica por trás de tal mudança. Segundo a Netflix, a ideia é aproximar seus números aos obtidos por players como YouTube e BBC’s iPlayer, que adotam metodologia semelhante no cálculo das visualizações. Por outro lado, tal métrica dificulta ainda mais a noção real em torno do que é visto no streaming, tornando impossível fazer comparações com outras mídias, como o cinema e a TV, que adotam outras metodologias. Seria comparar bananas com maçãs.

Além disto, há um outro fator que complica ainda mais tal busca em saber quantas pessoas realmente assistiram a um filme ou série: a visualização é associada à conta na Netflix, e é impossível saber quantas pessoas assistiram algo na mesma conta. Levando em consideração uma família com quatro pessoas, e que todas tenham assistido ao conteúdo em questão, o número seria quatro vezes maior que apenas uma visualização. Neste ponto, a Netflix leva uma baita desvantagem em relação ao cinema, por exemplo, cuja métrica tem acesso ao número de ingressos vendidos, independente do preço cobrado.

“La Casa de Papel” foi a recordista de visualizações no 1º trimestre de 2020

 

Soma-se a isso a conhecida falta de transparência que cerca não só a Netflix, mas todas as plataformas de streaming hoje existentes, que apenas divulgam os números que desejam. Com isso, é claro, apenas os sucessos são revelados, de forma a reafirmar tal potência. Filmes e séries com números baixos ou mesmo medianos permanecem no limbo da desinformação, sem falar que outras plataformas evitam revelar seus números justamente para não serem comparadas à Netflix, líder absoluta no setor. Não ficaria bem para a imagem, apesar do mercado saber muito bem quem é quem.

Por mais que seja uma atividade recente, falta ao streaming uma ferramenta de medição que não só analise todas as plataformas por igual como, também, transmita ao público informações claras e sem manipulações. O cinema, por exemplo, tem o cálculo da bilheteria, por mais que este seja calcado mais no preço do ingresso do que propriamente na quantidade vendida – o Brasil é uma das poucas exceções, onde se divulga o número e o valor obtido. A TV também possui sua medição própria, através da qual é possível saber o índice de cada programa exibido em cada canal em qualquer parte do planeta. No streaming, algo do tipo inexiste e não há a menor previsão, ou interesse, de que um dia irá mudar.

“A Máfia dos Tigres” tornou Joe Exotic um ícone cultural em tempos de pandemia

 

Enquanto isso, continuaremos com futuros anúncios de filmes e séries com números incríveis de visualizações, sem saber ao certo o que isto significa além da tal demonstração de força. No mundo atual, a imagem é bem mais importante que mil palavras, que o digam as redes sociais. Mas este é tema para outro artigo.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista e crítico de cinema. Fundador e editor-chefe do AdoroCinema por 19 anos, integrante da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro), autor de textos nos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros", "Documentário Brasileiro - 100 Filmes Essenciais", "Animação Brasileira - 100 Filmes Essenciais" e "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais". Situado em Lisboa, é editor em Portugal do Papo de Cinema.

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