De tempos em tempos, surgem números superlativos referentes a algum sucesso da Netflix. A Máfia dos Tigres (2020) teve 64 milhões de visualizações. A quarta temporada de La Casa de Papel (2017 – 2020), 65 milhões. The Witcher (2019) alcançou 76 milhões. O recente Resgate (2020) teria chegado a 90 milhões, em apenas quatro semanas na plataforma de streaming. Números robustos como estes sempre chamam a atenção, refletindo em inúmeras notícias internet afora e realçando uma imponência tão desejada, em termos de imagem. Mas, é sempre bom ressaltar, tal número está longe de significar que seja esta a quantidade de pessoas que assistiu a determinado filme ou série.
Em janeiro de 2020, a Netflix alterou a forma como contabiliza suas visualizações. Desde então, basta assistir a dois minutos de qualquer filme ou série para que uma visualização seja acrescida, no que a plataforma de streaming chama de “choose to watch”, ou escolha em assistir. Ou seja, tal métrica não se refere a quem realmente assistiu a todo um filme ou série, mas apenas a quem resolveu dar uma chance, a famosa espiadinha.
Usemos como exemplo as 90 milhões de visualizações de Resgate. Como o filme estrelado por Chris Hemsworth possui 116 minutos, basta ver 1,72% de sua duração para já contar uma visualização. No caso de séries, o percentual cai ainda mais: basta ter visto 0,42% de toda a temporada de The Witcher para que a saga com Henry Cavill ganhe sua desejada visualização. E por aí vai.
Por mais estranha que seja, há uma lógica por trás de tal mudança. Segundo a Netflix, a ideia é aproximar seus números aos obtidos por players como YouTube e BBC’s iPlayer, que adotam metodologia semelhante no cálculo das visualizações. Por outro lado, tal métrica dificulta ainda mais a noção real em torno do que é visto no streaming, tornando impossível fazer comparações com outras mídias, como o cinema e a TV, que adotam outras metodologias. Seria comparar bananas com maçãs.
Além disto, há um outro fator que complica ainda mais tal busca em saber quantas pessoas realmente assistiram a um filme ou série: a visualização é associada à conta na Netflix, e é impossível saber quantas pessoas assistiram algo na mesma conta. Levando em consideração uma família com quatro pessoas, e que todas tenham assistido ao conteúdo em questão, o número seria quatro vezes maior que apenas uma visualização. Neste ponto, a Netflix leva uma baita desvantagem em relação ao cinema, por exemplo, cuja métrica tem acesso ao número de ingressos vendidos, independente do preço cobrado.
Soma-se a isso a conhecida falta de transparência que cerca não só a Netflix, mas todas as plataformas de streaming hoje existentes, que apenas divulgam os números que desejam. Com isso, é claro, apenas os sucessos são revelados, de forma a reafirmar tal potência. Filmes e séries com números baixos ou mesmo medianos permanecem no limbo da desinformação, sem falar que outras plataformas evitam revelar seus números justamente para não serem comparadas à Netflix, líder absoluta no setor. Não ficaria bem para a imagem, apesar do mercado saber muito bem quem é quem.
Por mais que seja uma atividade recente, falta ao streaming uma ferramenta de medição que não só analise todas as plataformas por igual como, também, transmita ao público informações claras e sem manipulações. O cinema, por exemplo, tem o cálculo da bilheteria, por mais que este seja calcado mais no preço do ingresso do que propriamente na quantidade vendida – o Brasil é uma das poucas exceções, onde se divulga o número e o valor obtido. A TV também possui sua medição própria, através da qual é possível saber o índice de cada programa exibido em cada canal em qualquer parte do planeta. No streaming, algo do tipo inexiste e não há a menor previsão, ou interesse, de que um dia irá mudar.
Enquanto isso, continuaremos com futuros anúncios de filmes e séries com números incríveis de visualizações, sem saber ao certo o que isto significa além da tal demonstração de força. No mundo atual, a imagem é bem mais importante que mil palavras, que o digam as redes sociais. Mas este é tema para outro artigo.