Opinião :: Acossado e a revolução saudosista

Publicado por
Marcelo Müller

 A Nouvelle Vague francesa foi um dos principais movimentos de renovação da história do cinema. Diferenças historiográficas à parte, teria principiado com Nas Garras do Vício (1958), de Claude Chabrol, mas tornada um evento estrondoso, de ressonância pública, por conta, primeiro, do sucesso de Os Incompreendidos (1959) no Festival de Cannes, e, segundo, em virtude da estreia do provocador Acossado (1960). Os três diretores eram conhecidos do cenário cultural francês, pois críticos célebres da revista Cahiers du Cinéma, do núcleo dos chamados polemistas dessa verdadeira bíblia da Sétima Arte comandada por André Bazin e Jacques Doniol-Valcroze. Eram também dessa turma Éric Rohmer e Jacques Rivette, não à toa figuras igualmente imprescindíveis à transformação que visava libertar o cinema francês de certa tendência a produções caras e subservientes à linguagem literária. O filme de Jean-Luc Godard é o subversivo que chegou mandando às favas regras praticamente sagradas do chamado cinema clássico, embora com o advento do Neorrealismo Italiano nos anos 1940 já estivéssemos vivendo o moderno.

Desse modo, é lindo, mais que merecido, porém curioso, que Acossado seja “o clássico” homenageado na edição 2020 do Festival Varilux de Cinema Francês. Ele cabe como poucos filmes nesse panteão reservado às obras essenciais, mas talvez Godard, em sua permanente vigília contra a institucionalização das obras, desgostasse da expressão clássico atrelada à sua criação, pois ela vem comumente carregada de uma retórica de autoridade. E Godard é anti-autoridade por excelência e própria definição, assim como é o protagonista desse filme que tem inspiração na realidade. François Truffaut, que não considerava a Nouvelle Vague propriamente um movimento, nem uma escola, mas uma característica – embora houvesse a reivindicação desse grupo ao ímpeto de renovação –, ao que consta ficou bastante intrigado com um caso que gerou furor em 1952. Michel Portail roubou um carro em novembro daquele ano para visitar a mãe doente em Le Havre, matou um policial na estrada e voltou à Paris para encontrar a namorada, a jornalista norte-americana Beverly Lynette. Um Homem. Uma Mulher. Uma Arma.

“Tudo o que você preciosa para fazer um filme é um homem, uma mulher é uma arma”, disse certa vez o polemista Jean-Luc Godard. No filme, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) rouba um carro, mata um policial e volta para Paris, logo depois reencontrando a norte-americana Patricia (Jean Seberg) que anda pela Champs Elysees vendendo o jornal New York Herald Tribune. O protagonista é um decalque de várias figuras do cinema norte-americano policiais/noir, não à toa um obcecado por Humphrey Bogart, tanto que repete quase como tique o gesto do norte-americano de passar o dedo nos lábios. Até visualmente esse sujeito eternizado pela brilhante interpretação de Belmondo remete aos homens de chapéu que corriam atrás de femmes fatales, inclusive nas produções estadunidenses consideradas menos nobres (mais arriscadas narrativamente) ao ponto de ganharem a pecha de “filme B”. O cinema é um elemento essencial a Acossado, em diversas camadas. As menções, citações e mimeses vêm aos borbotões, como convém à paradoxal reverência revolucionária de Jean-Luc Godard nesse filme seminal.

O cineasta Jean-Pierre Melville aparece em cena como um escritor pedante que diz: “meu sonho é ser imortal e depois morrer”, claramente tirando onda de uma intelectualidade supostamente profunda. Michel, que tem como alcunha László Kovács, homenagem ao diretor de fotografia húngaro que fez história em Hollywood, diz lá pelas tantas que recentemente foi assistente na Cinecittà, estúdio italiano. Quando precisa se esconder da polícia, o casal principal recorre justamente ao escuro do cinema. Eles então assistem a um faroeste, especificamente Um Homem de Coragem (1959), de Budd Boetticher, filme de um cineasta menos amplamente celebrado como mestre do gênero, mas vital para compreendê-lo. Há também o cartaz de A Trágica Farsa (1956) e a exibição de Whirlpool (1950), outro noir, agora de Otto Preminger, no prédio em que Patrícia foge da polícia. O próprio Godard aparece em cena como um transeunte delator que, tão logo reconheça o protagonista estampado nos jornais como procurado por assassinato, se dirige aos policiais mais próximos para entrega-lo. Aliás, as ações de Acossado são triviais, restritas a gestos bem simples, entretanto numa moldura narrativa que nunca se cansa de nos desafiar/instigar a percepção.

O começo de Acossado tem a pegada dos filmes de aventura. Todavia, os jump cuts, cortes que provocam sobressaltos entre as tomadas, às vezes dentro do mesmo plano, causam um estrépito então absolutamente novo, uma vibração. Godard quebra a lógica da montagem invisível, rompendo com a ideia de tornar o processo imperceptível ao espectador durante a construção de um fluxo de ilusão. Ao contrário, mostra constantemente a quem está assistindo que aquilo faz parte de uma miragem, convidando à reflexão sobre a forma do filme, descontinuando espaço-tempo visualmente enquanto a banda sonora segue linear, por exemplo, criando assim espaços instigantes. Essa vontade de falar do cinema como uma quimera também surge no modo como Belmondo se transmuta num Bogart parisiense afeito a trambiques, homem que constantemente quebra lógicas da moralidade, celebrando o fascínio pela contravenção sem objetivo a longo prazo, a feita pela subsistência imediata e pelo simples prazer de romper. Entretanto, ele não se furta de expressar todo seu amor pela norte-americana de espírito livre.

Patrícia é uma personagem vital em Acossado, frequentemente eclipsada pela natureza quase mítica do rapaz vivido por Jean-Paul Belmondo. Ela representa essa mulher que emergia como peça social reconfigurada na década de 1960. De cabelo curto e comportamento amoroso/sexual livre, não se permite ser regida pelos códigos da sociedade que prevê às mulheres subserviência e restrição ao espaço privado. Curioso perceber que ela olha diretamente à câmera – em outro expediente que visa despertar o espectador da passividade – em três momentos. Nos dois primeiros, rapidamente, como se sinalizasse a ciência da nossa existência do outro lado da tela. No final, demoradamente, quando herda o gesto de passar a mão nos lábios após fazer uma aposta alta para compreender a natureza de seus sentimentos por Michel. Assim, remete ao olhar que a personagem de Harriet Andersson lança a nós após fazer algo de contornos, a priori, reprováveis em Monica e o Desejo (1953). Godard ama Ingmar Bergman.

Filme de amor. Filme de aventura. Filme policial. Acossado é um pouco de tudo isso, reverente e vanguardista. Sem ele, por exemplo, não existiria uma obra-prima do cinema brasileiro como O Bandido da Luz Vermelha (1968), longa que guarda semelhanças com o precursor francês – do personagem marginal/sedutor aos painéis luminosos que expõem a busca pública pelo jovem em fuga. Diferentemente do antes postulado como regra, Jean-Luc Godard pega sua câmera leve e, acompanhado dos atores e do restante da equipe, vai às ruas de Paris, não as subordinando ao circo do cinema, porém deixando-se atravessar pelo ímpeto contrário. Em vários instantes, transeuntes desavisados podem ser flagrados observando curiosos o cinema, estabelecendo um ruído antes impensável, a partir dali tido como elemento orgânico desse frescor que a Nouvelle Vague buscava em contato com a vida cotidiana. Há coisas nesse tecido que viraram convenções, mas que antes soavam como violações impensáveis de enfant terrible.

Durante quase o filme todo, Michel perambula condicionado por uma busca. Ele está no encalço do sujeito que lhe deve dinheiro. Nada mais que um Mcguffin, ou seja, um dispositivo utilizado para fazer o enredo avançar, mas de importância restrita meramente a tal função. É Godard acenando para outro de seus mestres: Alfred Hitchcock. Ainda sobre esse personagem emblemático de Jean Paul Belmondo, ele é lido como alguém vulgar em certa medida, numa inversão dos papeis idealizados com a norte-americana Patrícia. Ao contrário do senso comum “europeus são cultos e estadunidenses ordinários”, o homem do Velho Continente insiste em transar quando a representante do Novo Mundo e propõe discussões densas a respeito de William Faulkner e Pierre-Auguste Renoir. Acossado é isto: misto de homenagens a ícones e elementos estabelecidos na cultura, seja ela cinematográfica ou não, e uma brilhante proposição de ruptura com o pré-estabelecido. Carta de amor ao cinema, proposta a chacoalhar as suas estruturas a fim de renová-las. Se manifesta na inquietude de Michel, nas contradições de Patrícia e no gênio de Jean-Luc.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)