Atualmente qualquer um é chamado de mito nas redes sociais e na vida pública. Até mesmo os tipos abomináveis como certos ex-presidentes brasileiros. Existe uma banalização desses rótulos que antes designavam personalidades realmente respeitáveis e admiráveis. Mas, verdade seja dita, há poucos que poderiam ser chamados de mitos. Neste artigo vamos falar de um astro que merece carregar o título, seja por uma beleza capaz de tirar o fôlego das plateias por décadas ou pelo talento que o permitiu eternizar personagens em filmes inesquecíveis. Em agosto deste ano morria o francês Alain Delon, grande homenageado do Festival Varilux de Cinema Francês 2024 – o evento exibe em sua memória uma cópia restaurada de O Sol por Testemunha (1960).
Filho de um projecionista (que mais tarde chegou a dirigir filmes) e de uma assistente de farmácia que trabalhou na recepção de uma sala de cinema, Alain Delon teve de conviver desde cedo com o divórcio dos pais. O garoto foi criado por uma família adotiva que sequer imaginava que ele viria a se tornar um astro de dimensão mundial. Aluno do internato católico, mais tarde alistado no exército francês, Delon foi sucessivamente enquadrado por entidades disciplinadoras. Como era indisciplinado e irascível, claro que houve problemas e ruídos. E essa sua rebeldia peculiar está impressa em parte de seus personagens, nos homens fascinantes que ele interpretou no cinema.
Alain Delon fez carreira na Europa, mas poderia ter sido antes um astro hollywoodiano. Recrutado por um representante do produtor norte-americano David O. Selznick (um dos mais influentes da Era de Ouro), o aspirante a ator tinha a possibilidade de assinar um contrato de sete anos para fazer filmes em Hollywood, mas com a condição de aprender inglês. Voltou para a França com esse intuito, mas acabou escalado por produtores europeus para filmes cada vez mais importantes, isso até receber o convite de René Clément para interpretar o indefectível Tom Ripley em O Sol por Testemunha (1960). Antes se destacava timidamente. Agora começava a brilhar de verdade. O sucesso continental do longa-metragem baseado numa das obras mais famosas da escritora norte-americana Patricia Highsmith fez de Delon uma figura “quente” no cinema, pronto para ocupar um espaço de destaque.
Por sorte e/ou pura competência, logo depois ganhou de presente outro papel incrível: o protagonista de Rocco e Seus Irmãos (1960), obra-prima de Luchino Visconti. Valorizado internacionalmente pela colaboração com grandes e consagrados diretores, o iniciante foi escalando degraus até se instalar confortavelmente no Olimpo do cinema – sem precisar de Hollywood para ter uma carreira brilhante. Vale destacar que Delon protagonizou O Eclipse (1962), de Michelangelo Antonioni, O Leopardo (1963), reeditando a parceria com Visconti, Paris Está em Chamas? (1966), voltando a trabalhar com René Clément, e O Samurai (1967) de Jean-Pierre Melville. Em menos de 10 anos, ele floresceu.
O cinema sempre foi também um celeiro de símbolos sexuais, de homens e mulheres cuja beleza é celebrada como os crédulos festejavam os predicados das divindades na Grécia Antiga. Mesmo ciente de que beleza é algo bastante relativo/subjetivo e de que o mais importante em termos cinematográficos é o talento, precisamos dizer: Alain Delon foi um dos rostos mais bonitos da Sétima Arte. Porém, astuto como era, colocava esse diferencial a serviço da complexidade dos personagens que representava nas telonas. Às vezes, por trás das feições magnéticas e sedutoras se escondiam personalidades ladinas, agressivas, fragilizadas, frias, conspiradoras, abusivas, etc. Delon convencia como homem do povo, cujo encanto era uma espécie de compensação divina para os obstáculos cotidianos, mas também se encaixava perfeitamente na pele dos aristocratas mais manipuladores e conspiradores em favor da burguesia.
Chamamos Alain Delon de mito também por essa beleza esfuziante, mas, sobretudo, pela capacidade de emprestar seus trunfos naturais para a construção de outras vidas, de existências puramente cinematográficas. Mesmo que na maturidade ele tenha manifestado posições políticas conservadoras que contradizem os princípios mais básicos da arte, Delon soube aproveitar a aura “maior quer a vida” conquistada com méritos até mesmo na hora de morrer. Como um conservador incorrigível poderia defender (e ele defendeu) a eutanásia, o direito inalienável de cada um arbitrar sobre o próprio destino?
Alain Delon foi três vezes indicado ao César de Melhor Ator (o Oscar do cinema francês): por Cidadão Klein (1977), A Morte de um Corrupto (1978) e Quartos Separados (1985), este pelo qual ganhou o seu único César; foi indicado ao Globo de Ouro de 1964 como Ator Promissor por seu papel em O Leopardo; venceu os prêmios honorários máximos dos festivais de Cannes, Berlim, Locarno, Taormina, Marrakesh e Transilvânia; além de ser agraciado com a mesma honraria no David di Donatello (Itália) e no Golden Câmera (Alemanha). Não há forma mais recomendada para compreender porque esse sujeito merece o título de mito do que revisitar os seus filmes. Os títulos citados neste artigo são de lei, paradas essenciais para compreendermos a importância desse francês a todo o cinema europeu dos anos 1960 em diante.
O Festival Varilux de Cinema Francês 2024 nos dá a oportunidade de assistir, numa cópia lindíssima, ao filme que catapultou Delon da área destinada aos mortais diretamente para o firmamento onde moram os astros e as estrelas que desfilaram as suas belezas e os seus talentos pelas telonas do mundo. Vá ao cinema conferir O Sol por Testemunha e entenda porque Alain Delon pode (e deve) ser tratado como mito. Nunca houve um Tom Ripley tão intrigante e perigoso como o apresentado por Alain Delon.
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