20221220 artigo alergia papo de cinema

Há uma doença atingindo os amantes do cinema, no mínimo, desde que esse meio de expressão começou a ser tido como algo de potencial artístico. Chamarei essa moléstia aguda de Alergia à Popularidade. Os sintomas são simples de identificar. Diante de um filme que fura as bolhas da cinefilia, os acometidos pela tal enfermidade começam a sentir contorções abdominais que podem gerar persistente uma sensação de náusea, além da vontade incontrolável de ir às redes sociais escrever coisas como “não é tudo isso” ou “não vi e não gostei”. Os infectados pela doença altamente contagiosa podem apresentar indícios prolongados de intolerância diante da opinião alheia e agressividade condizente com o avanço dos sintomas. Não é incomum os pacientes entrarem num estágio de negação, ao ponto de procurar subterfúgios e utilizar malabarismos retóricos para combater a euforia do público supostamente menos qualificado do que eles. Claro, estão mais suscetíveis à agressividade dos sintomas os indivíduos pedantes com propensão ao egocentrismo e ao exercício da cinefilia dentro de uma delirante demonstração de poder por meio de conhecimentos adquiridos. Então, fique atento: ao menor sinal desse comportamento, procure respirar e pensar se você não está sofrendo da condição debilitante.

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Ninguém aqui está dizendo que todos os filmes populares são bons. Tampouco que as críticas negativas a filmes populares são sinais de infecção. É preciso parcimônia e critério na hora de fazer o diagnóstico. Primeiro, porque essa suposta batalha interminável entre popular e erudito (como sinônimo de bom) é mais velha do que andar para frente. Por um lado, quantos autores, teóricos e artistas não foram negligentes com aspectos da cultura popular ao compreende-la erroneamente como algo menor, justamente, por ter uma maior amplitude de alcance? E quantos não caíram no manjado conto do vigário da arte que atende a interesses estético-narrativos excludentes, representante do pensamento pequeno-burguês do que seria elevado? Por outro lado, quantos também não celebraram filmes de sucesso estrondoso como se fossem a genuína representação de uma vontade massiva, mas que, na verdade, indicavam apenas o resultado do investimento pornográfico em publicidade e marketing? Ser erudito e popular não garante qualidade, poder de influência ou o que quer que seja. Todavia, não é sobre esse embate que estou falando por aqui, mas da Alergia à Popularidade como indício de um quadro ainda mais grave: a ideia torta de que é fundamental transitar em meios exclusivos para ter relevância.

Outro sintoma facilmente identificável da Alergia à Popularidade é a imediata negação. “Eu não sou assim”, dizem constantemente os infectados por essa moléstia que cresceu de modo vertiginoso com o advento das redes sociais. E esse estágio dificulta o tratamento mais aconselhável: a revisão de valores de acordo com os parâmetros da recepção alheia. Sim, pois não é a popularidade de uma obra que define os seus predicados estético-narrativos. A adesão do público além de nichos muito específicos pode significar tantas coisas, não necessariamente que certos cineastas foram picados pelo mosquito Querus ser famosus. Talvez esse artista tenha encontrado um meio de dialogar com públicos maiores ou mesmo esteja pensando em termos mais abrangentes? O fato é que muita gente, febril por conta da Alergia à Popularidade, adora “desmascarar” a celebração a determinados filmes e artistas que atingem mais gente do que o seu cineclube ou mesmo o seu grupinho de Cinéfilos Top no Whatsapp. A questão é complexa e meu diagnóstico facilmente pode ser distorcido por alguém dizendo: “mas isso é uma defesa dos filmes-evento ou daqueles cineastas que se ‘vendem’ à indústria depois de fazerem estreias artisticamente promissoras”. Se você chegou até aqui e pensou que essa sátira é sobre isso, talvez esteja padecendo de outra moléstia grave: a Distorcionite Aguda, que nada mais é do que torcer o discurso alheio para ele caber exatamente no seu padrão de pensamento. E isso é grave.

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Ora, meu caro e eventual paciente incrédulo. Todos nós já sofremos desse tipo de doença que afeta diretamente o ego. Se há uma coisa nefasta no meio cinéfilo, perceptível em qualquer ambiente no qual o conhecimento é encarado como componente de concentração de poder, é essa luta por um lugar ao sol. Faça você mesmo um diagnóstico. Entre em sua rede social favorita e acompanhe uma discussão qualquer sobre um filme que está bombando. De uma amostragem considerável de comentários, com réplicas e tréplicas apaixonadas, identifique quantos estão realmente preocupados com a construção de um diálogo e quantos são apenas demonstrações desesperadas de “EU estou certo, você não entendeu absolutamente nada”. Dentro desse cenário epidemiológico favorável à disseminação da Alergia à Popularidade e da Distorcionite Aguda, fica cada vez mais difícil discernir entre: 1) a ponderação consistente que visa desmascarar estratégias incumbidas de transformar o cinema numa massa homogênea e facilmente deglutível; 2) demonstrações tacanhas de revide contra alguém que “ousou” ser mais do que celebrado por meia dúzia de cinéfilos apegados ao seu suposto conhecimento exclusivo. As armadilhas são muitas, os diagnósticos falsos comprometem o tratamento, mas fiquemos atentos. Procure refletir ao sinal de qualquer comichão. E, ao persistirem os sintomas, uma boa reciclada no pensamento deve ser administrada o quanto antes. O tratamento não dói, garanto.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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