Opinião :: Amor, Estranho Amor e a ousadia censurada de Walter Hugo Khouri

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Marcelo Müller

Nesta sexta-feira, 12, finalmente Amor, Estranho Amor (1982) será exibido na televisão brasileira. Caberá ao Canal Brasil a veiculação desse exemplar conhecido popularmente como “o filme da Xuxa”, assim nem tanto pela participação da Rainha dos Baixinhos no elenco, mas principalmente pela força que a celebridade fez ao longo dos últimos anos para apagar esse episódio de uma carreira que estava começando. Estima-se que entre 1991 e 2018 ela tenha gastado US$ 60 mil anualmente para continuar como detentora dos direitos autorais do título, desse modo tendo poder sobre sua circulação e, como neste caso, privando-o da possibilidade de encontrar novos públicos. Segundo relatos da própria Xuxa, ela foi convencida por seu namorado na ocasião, Pelé, a participar da produção, vivendo a prostituta iniciante dada de presente ao menino de 12 anos, logo servindo para ele possivelmente ter sua primeira experiência sexual. Obviamente, os esforços censórios da apresentadora foram no sentido de preservar intacta a imagem cândida com seu público-alvo. De fato, ela não achava prudente deixar circular um trabalho em que contracena nua com uma criança, especialmente no período em que estava prestes a se lançar ao estrelato na TV.

Xuxa, coadjuvante em cena, chegou ao cúmulo de mover uma ação judicial contra o Google, tentando obrigar a empresa a exterminar qualquer vínculo de seu nome com Amor, Estranho Amor. Primeiro, ela impôs a censura por intermédio do poderio financeiro. Segundo, buscou apagar rastros do trabalho, querendo o atirar no esquecimento. Recentemente, em 2018, abriu mão de pagar pelos direitos e até advogou publicamente a favor do acesso ao longa-metragem no qual contracena com Vera Fischer, Tarcísio Meira e Mauro Mendonça, entre outros nomes bastante conhecidos. Aliás, numa entrevista concedida ao Papo de Cinema durante o 26º Festival de Vitória, Fischer comentou o assunto, sem papas na língua, quando perguntada: “Outros atores muito importantes também estavam naquele filme, como Tarcísio Meira, Íris Bruzzi, Mauro Mendonça. Foi um desrespeito com todos esses profissionais (ela se refere ao embargo). Além de ter ganhado o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Brasília, recebi também o Troféu Air France, que era um dos mais disputados naquela época. Ou seja, é claro que fiquei chateada, pois quero que, quem ainda não o assistiu, conheça essa obra”. Pois bem, o filme está prestes a ser visto.

 

AFINAL, O FILME É BOM?
A despeito da fama por conta da celeuma com Xuxa Meneghel, Amor, Estranho Amor é um filme de valor, sobretudo por sua coragem ao mesclar política e desejo. Tudo isso embalado num processo memorialístico que pode, inclusive, ser responsável por colocar em xeque coisas que vemos – pois, grande parte do filme é a projeção das lembranças do homem adulto em contato com um cenário importante ao período de seu amadurecimento. Hugo (Wálter Forster) percorre os cômodos vazios do casarão que nos anos 1930 abrigou um bordel de luxo, basicamente frequentado por grandes figurões da vida política brasileira daqueles tempos. Assim como em boa parcela dos filmes dirigidos por Walter Hugo Khouri, um dos nossos cineastas mais sofisticados e infelizmente negligenciados, aqui a inocência é confrontada pela sexualidade exacerbada nesse lugar. Além disso, o erotismo é enquadrado como elemento importante dentro de um jogo de poderes que evade as fronteiras da propriedade e reverbera extracampo nos gabinetes do legislativo. O protagonista recorre à sua pureza da infância em busca de algo que perdeu pelo caminho.

Amor, Estranho Amor, como em vários provocativos filmes que Khouri fez nos anos 1970 e 1980, é atravessado pelo erotismo volumoso na nossa produção cinematográfica das épocas citadas. Não há pudores quanto à nudez – inclusive a tão comentada de Xuxa, na cena em que se oferece ao assustado menino vivido por Marcelo Ribeiro –, tampouco com relação a abordar temas considerados tabu, como o Complexo de Édipo. Numa cena, após resistir às investidas de uma beldade seminua, o pré-adolescente se deleita com a visão da própria mãe tomando banho. Mas, o gesto está bastante distante da vontade simplista de escandalizar. Funciona mais como indício violento de impulsos íntimos interditados pela sociedade. Naquela circunstância, é um espelho para várias conjunturas de natureza diferente, mas de teor simbólico semelhante, tais como os próprios humores da coletividade diante das mudanças sócio-políticas que aconteceriam. Trata-se de uma obra ambientada na convulsionada época do Estado Novo, em que o realizador mistura diversos poderes e anseios ali investidos a fim de construir um panorama denso e sedutor. Aos que buscarem simplesmente o escândalo, um aviso: o filme é muito mais do que a fama adquirida de censurado.

Xuxa, na première do filme. Foto/divulgação

 

QUEM É WALTER HUGO KHOURI?
Numa cinematografia aguerrida como a brasileira, não inscrita nos círculos hegemônicos de produção e distribuição, é infelizmente comum a demora à realização de filmes. Mesmo nomes importantes às vezes penam durante anos entre um êxito e outro, o que torna a trajetória de Walter Hugo Khouri ainda mais fascinante. Filho de pai libanês e mãe italiana, realizou mais de 20 longas desde a metade final dos anos 1950, atravessando modismos e movimentos que o colocaram à margem por conta de sua associação com um cinema menos revolucionário e mais existencialista. Os personagens de Khouri não refletem o grosso da população. Com exceções, são todos membros da classe burguesa, homens e mulheres atravessados por uma sensação de vazio inextinguível. Movidos frequentemente pelo desejo sexual, eles, contudo, não conseguem saciar uma fome que pouco tem a ver com a carne, no fim das contas, embora passe inevitavelmente também por ela. Amor, Estranho Amor apresenta alguns elementos recorrentes em seus filmes ou, quando não constantes, que já haviam aparecido como indícios da visão desse realizador.

O incesto, aqui sugerido, é consumado em O Prisioneiro do Sexo (1979), filme de alta voltagem erótica em que Tarcísio Meira não apenas confessa o desejo de ir com a filha para cama, mas efetiva consensualmente o ato interditado. As burguesias entediadas, traições como modo de chacoalhar a inércia, relações edipianas, a infância como repositório de lembranças reconfortantes (às vezes simultaneamente dolorosas), o cenário externo como projeção da dominante psicológica dos personagens, a insatisfação atingindo os picos da exasperação. Tudo isso, constantemente visto em outros longas do cineasta, está presente em Amor, Estranho Amor. Khouri ficou marcado na história do nosso cinema por conta do sucesso de Noite Vazia (1964), filme que repetidamente o coloca na rota das comparações com o sueco Ingmar Bergman e o italiano Michelangelo Antonioni. Mas, sua carreira possui outros êxitos de força artística equivalente, senão até maiores. O Corpo Ardente (1966) é uma prova da sofisticação de seu trabalho, pedra fundamental para certos temas/situações/alusões repetidas em obras distintas subsequentes.

Walter Hugo Khouri criou personagens femininas fortes, cientes de seu poder e indispostas diante dos grilhões da sociedade machista. Também apresentou homens com comportamentos irresponsáveis, verdadeiros pilares de uma elite torpe e “umbigocêntrica”. Seu olhar nunca esteve direcionado ao entendimento específico das tensões entre classes e gêneros. Pelo menos não tão abertamente. Evitou hastear panfletos, flâmulas ou o que os valha. Demonstrou interesse pelo aspecto humano identificável nessas fissuras, naquilo que não necessariamente está disponível a olho nu. De todo modo, deixou espaços generosos para o espectador estabelecer conexões íntimas com essas pessoas imaginadas, não demonstrando simpatia exagerada por elas, mas tampouco as “cancelando” por serem mesquinhas, exageradas, histriônicas, alienadas, classicistas, machistas ou violentas. Enfim, não sentencia tendo em vista os erros, mas faz questão de resgatar das profundidades esses lados menos bonitos das personalidades contempladas. Justamente por ir na contramão do cinema revolucionário – no discurso e pretensamente na forma – celebrado como essencial nos anos 1960, e por, à sua maneira, dançar conforme a música para seguir produzindo cinema, foi relegado ao segundo escalão dos cineastas. Absurdo, pois Khouri é digno de lugar cativo no Olimpo.

Walter Hugo Khouri. Foto/divulgação

 

AO FILME O QUE É DO FILME
Certamente, Amor, Estranho Amor não merecia ter entrado no imaginário brasileiro como “o filme da Xuxa”. Antes tarde que nunca, teremos a oportunidade de assistir a ele em condições apropriadas – bem que, passada a pandemia, poderiam rolar exibições no cinema, né? Tomara que passe a ser valorizado pelos méritos, não pela mesquinhez de quem colocou acima da arte os moralismos e a vontade de manter ilibada uma imagem junto ao público infantil. E, um conselho? Procure saber mais sobre esse gênio que foi Walter Hugo Khouri, alguém que fez filme de suspense (O Anjo da Noite, 1974), flertou com o horror (As Filhas do Fogo, 1978), fez um scif-fi existencialista sem efeitos visuais (Amor Voraz, 1984), lançou filme quando o então presidente Fernando Collor de Mello inviabilizou o cinema por aqui (Forever: Juntos para Sempre, 1991), além de muitos feitos alcançados. Motivos a outro artigo, que ele merece.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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