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Opinião :: Amor Maldito, o exemplo do primeiro longa-metragem brasileiro dirigido por uma mulher negra

Publicado por
Bruno Carmelo

Em 1984, o cinema brasileiro já tinha se profissionalizado e industrializado, tinha apresentado as chanchadas, o Cinema Novo, as pornochanchadas, o Cinema Marginal. A nossa cinematografia tinha vencido o Festival de Cannes, criado a Embrafilme, desenvolvido um star system, popularizado o cinema lúdico de Mazzaropi, o cinema infantil dos Trapalhões, atingido 11 milhões de espectadores com Dona Flor e seus Dois Maridos (1976). O circuito exibidor já tinha atingido o marco de 3200 complexos pelo país, enquanto a produção nacional havia chegado ao marco de 103 filmes produzidos apenas em 1980, com um market share (proporção de ingressos brasileiros vendidos em relação aos filmes estrangeiros) excepcional de 35%. Mesmo assim, até o dia 13 de agosto de 1984, o cinema brasileiro não havia lançado comercialmente nenhuma produção dirigida por uma mulher negra – até a chegada de Amor Maldito, de Adélia Sampaio.

 

Adélia Sampaio

 

O filme representa um marco importante por diversos fatores. Primeiro, porque não constitui um projeto consensual, sobre temas palatáveis em busca do maior público possível. O drama se inicia com o suicídio de uma miss (interpretada por Wilma Dias) e segue com um tenso embate nos tribunais, quando Fernanda (Monique Lafond) é acusada de crime pelo relacionamento homossexual com a vítima. Os pais da garota morta são “terrivelmente evangélicos”, do tipo que grita “Satanás!” ao se deparar com qualquer comportamento desconhecido. O pai, um pastor evangélico, espanca a filha com uma Bíblia. A produção discute de modo frontal a homossexualidade, o preconceito, a hipocrisia religiosa, o viés conservador e punitivista da justiça. Embora não haja dúvidas quanto ao suicídio de Sueli, Fernanda é acusada não exatamente pela morte da esposa, e sim por ser lésbica. O tribunal instaurado julga, simbolicamente, a legitimidade de um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo.

Isso significa que a primeira diretora negra do cinema brasileiro também ousou propor uma obra de teor incendiário. O caminho até este projeto não surgiu por acaso: Sampaio já tinha experiência como distribuidora, produtora, continuísta, e participava de diversos projetos dirigidos pelos colegas homens e, na grande maioria, brancos. Quando buscou financiamento para Amor Maldito, recebeu respostas negativas, conforme afirmou em diversas entrevistas, por estimarem que “aquilo não era para ela”. O tema do projeto tampouco ajudava a arrecadação de fundos: quem aceitaria, nos anos 1980, patrocinar um filme sobre duas mulheres se beijando? A cineasta poderia então atenuar o tom da narrativa, meramente sugerir o romance entre Sueli e Fernanda, tentar passar pelas malhas do sistema discretamente. Diversos diretores cujos temas abordam a orientação sexual e a identidade de gênero apostaram num viés subentendido. Ora, o caminho adotado por Sampaio foi outro: fazer o filme “na marra”, em suas palavras, e do jeito que quisesse.

 

 

“Eu sou uma mulher assumida!”. Monique Lafond grita ao público presente no tribunal, depois de aguentar estoicamente a sugestão de que teria “desencaminhado” Sueli, “arrastado a vítima à perversão sexual”. “O homossexualismo, essa coisa que muitos costumam tratar com panos quentes, perdoem-me a expressão, mas eu considero uma imundície, uma falta de vergonha!”, berra o promotor vivido por Vinícius Salvatori, transmitindo com afetação a fúria conservadora. Amor Maldito constitui um gesto de afirmação, rebeldia e liberdade artística. Trata-se de um posicionamento político notável para uma diretora que também precisava se afirmar. Adélia pode ser equiparada à sua personagem, Fernanda, no sentido de ser uma mulher que não acredita dever explicações a quem quer que seja, e disposta a enfrentar a reprovação alheia. O drama inclui close-ups de beijos entre as protagonistas, além de uma cena de amor das atrizes nuas entre as plantas.

Reunindo o mínimo orçamento possível, realizou-se o filme que, uma vez pronto, não conseguia espaço para o lançamento em salas de cinema. Nenhum circuito exibidor aceitava distribuir um drama de tal conteúdo. Um distribuidor teve a curiosa ideia de apresentá-lo como produção pornográfica, aproveitando o imaginário ainda recente da pornochanchada, e explorando a popularidade de Wilma Dias, atriz e dançarina que saía de dentro de uma banana descascada no programa Planeta dos Homens, da TV Globo. O resultado foi um sucesso de bilheteria, pagando os custos do filme e firmando Adélia Sampaio não apenas como a primeira diretora negra a produzir um longa-metragem, mas também a distribui-lo. Até hoje, dramas de respeito como Amor Estranho Amor (1982), de Walter Hugo Khouri, lutam para escapar do rótulo equivocado de pornografia. Ironicamente, a autodenominação erótica permitiu a Sampaio contornar as regras tácitas e garantir a exibição da obra.

 

 

Amor Maldito se torna ainda mais simbólico quando se pensa que demoramos 33 anos para apresentar comercialmente o segundo filme dirigido por uma mulher negra: O Caso do Homem Errado (2017), de Camila de Moraes. O documentário resgata a história do operário negro Júlio César, executado pela Polícia Militar ao ser confundido com um assaltante no Rio Grande do Sul, em 1987. O projeto também se posiciona de modo assertivo, aproveitando a oportunidade de expressão num meio tradicionalmente masculino, branco, heterossexual e cisgênero para discutir a brutalidade policial e a luta negra. Nenhuma dessas mulheres buscou um caminho fácil. No entanto, é preciso constatar que a proeza de Adélia Sampaio não significou que as portas estariam abertas a outras cineastas negras. O drama de 1984 precisa ser resgatado no imaginário cultural para compreendermos os motivos que ainda levam à exclusão de mulheres negras da direção, da fotografia, produção, e dos papéis em frente às câmeras.

Este drama não é estudado em escolas de cinema, nem por seus méritos cinematográficos, nem pelo marco histórico que representa. Ele permanece uma exceção entre exceções, “o caso do filme errado”, de guerrilha, ousando vender-se com uma embalagem diferente do conteúdo. Ele tampouco abriu as vias para uma carreira longeva da cineasta, que dirigiu poucos projetos desde então, como o documentário Fugindo do Passado: Um Drink para Tetéia e a História Banal (1987), o média-metragem para a televisão AI-5: O Dia que Não Existiu (2004), em parceria com Paulo Markum, e o curta-metragem O Mundo de Dentro (2018). “Cinema é, sem dúvida, uma arte elitista, aí chega uma preta, filha de empregada doméstica e diz que vai chegar à direção, claro que foi difícil! Até porque me dividia entre fazer cinema e criar meus dois filhos”, afirmou.

 

 

Não caberia a este texto sugerir que todas as produções brasileiras, especialmente aquelas concebidas por artistas em posições marginais, recorram a subterfúgios para serem produzidos e lançados nos cinemas. A astúcia e coragem de Sampaio precisam constituir um caso de estudo, não um modelo a adotar para todos os filmes. Cabe ao mercado absorver obras de cineastas como Sabrina Fidalgo, Glenda Nicácio, Renata Martins e Viviane Ferreira, e não a elas se adaptarem às barreiras impostas pelo caminho. Se as oportunidades são magras a diretores homens e brancos estreantes, elas se tornam muito mais restritas a mulheres negras. O cinema brasileiro não é feito apenas de Humberto Mauro e Glauber Rocha e Rogério Sganzerla e Cacá Diegues e Fernando Meirelles e Luiz Carlos Barreto e Rosemberg Cariry e Jorge Furtado e Kleber Mendonça Filho e Karim Aïnouz. Quanto mais se resgata Amor Maldito, com sua trajetória e discurso excepcionais, mais se escancara a invisibilidade de que ele é sintoma. Às vezes os filmes mais importantes de uma cinematografia não são aqueles que colecionaram prêmios e arrastaram multidões às salas, e sim os projetos cujo significado ultrapassa a esfera do filme.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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