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Aos interessados pela história do cinema, é incontornável estudar a contribuição do cinema russo, do realismo socialista à consagração de nomes como Andrei Tarkovsky. Todavia, de uns anos para cá, afora iniciativas localizadas dos nossos distribuidores, relativamente poucos longas russos têm chegado por aqui, ainda que o mercado brasileiro seja tido como um dos principais internacionais a eles. Situação prestes a mudar por conta do protagonismo acentuado do streaming? Talvez, mas enquanto essa possibilidade não se confirma (ou se contradiz), é importante celebrar ocorrências como o 1º Festival de Cinema Russo no Brasil. Seguindo os moldes de eventos temáticos de determinadas cinematografias – tais como o Festival Varilux de Cinema Francês e a 8 e ½ Festa do Cinema Italiano – a ideia dos organizadores foi justamente disseminar essa produção bastante rica e que evidentemente deve evadir divisas para reverberar. O evento, que aconteceu online de 10 a 30 de dezembro dentro da plataforma Spcine Play, foi organizado pela Roskino, a Agência Federal de Cultura Cinematográfica da Rússia, entidade incumbida justamente de promover as produções russas no exterior. Ela foi criada, com outro nome, em 1924 e vem tendo êxito. Mas, afinal, o que esse recorte de oito longas trouxe para o público brasileiro? Chega mais e confere.

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O cinema de gênero e o grande destaque
O maior destaque do 1º Festival de Cinema Russo foi O Homem que Surpreendeu a Todos (2018), de Natasha Merkulova e Aleksey Chupov. Não à toa, de todos os selecionados, foi o filme que mais circulou em festivais internacionais de renome, como os de Munique, Roterdã e Veneza, deste do qual saiu com a estatueta de Melhor Atriz (Natalya Kudryashova) na prestigiada Mostra Horizontes. Além disso, no Prêmio Nika 2019, o mais importante da Rússia, ele levou as distinções de Melhor Ator (Evgeniy Tsyganov) e Ator Coadjuvante (Yuriy Kuznetsov), além de ter sido indicado a Melhor Atriz (Natalya Kudryashova), Direção, Roteiro e Filme. O protagonista é um homem desenganado pela medicina que, ao invés de esperar pacientemente a morte, decide enganá-la vestindo-se de mulher. Sua atitude insólita acaba gerando um efeito cascata na pequena comunidade em que mora, a começar pelas turbulências no seio de sua própria família e culminando com uma quase completa exclusão social. A força do filme vem justamente da sensibilidade dos diretores diante de uma situação nunca determinada. Eles são hábeis formuladores de questões que, ao não as responderem, deixam espaço à intuição do espectador. Belo filme.

Num meio termo, dimensão importante para termos noção acurada da produção cinematográfica atual da Rússia, três filmes de gênero que não fazem feio (pelo menos dois deles). O Texto (2019) se desvencilha com destreza de determinados clichês do thriller, aderindo voluntariamente a outros, mas oferecendo, ao menos, um percurso instigante. O tema do homem errado é praticamente universal e aqui ele serve de estopim a uma derrocada moral e psicologicamente violenta. O drama animado ganha seu representante em O Reino Gelado: A Terra dos Espelhos (2018), exemplar que já tinha passado comercialmente pelo Brasil e que resiste, inclusive, às inevitáveis comparações com certa animação da Disney que também tem princesas de poderes gelados. Por meio dele, os pequenos também tiveram seu quinhão de inclusão no 1º Festival de Cinema Russo. O ponto destoante dessa ótima seleção foi mesmo a comédia Vamos Nos Divorciar! (2019), cujas graça e mensagens se perdem num emaranhado de situações mal resolvidas e piadas encaixadas a fórceps dentro de uma surrada dinâmica de separação. Porém, mesmo assim o filme desempenha o papel de nos apresentar às tentativas de um cinema popular russo.

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Cena de “o Homem que Surpreendeu a Todos”

 

Tradição e modernidade
Filmes como Arritmia (2017) e O Coração do Mundo (2018) apontam ao caminho de uma possível renovação. Não à toa, ambos têm a mão criativa de Nataliya Meshchaninova – roteirista do primeiro e roteirista/diretora do segundo ela que nos cedeu uma entrevista exclusiva que você pode ler aqui. A jovem cineasta parece mais interessada num cinema voltado a investigar personagens em situações que a eles se apresentam como limítrofes. No primeiro longa, um casal de profissionais de saúde está num doloroso processo de separação, mas ainda precisa dividir o mesmo teto. Ao largo dessa tensão íntima, doméstica, é vislumbrado o processo de reforma do sistema de saúde russo, este que torna atendimentos menos humanos e mais pragmáticos. Lidar com as demandas internas e externas também é algo presente em O Coração do Mundo, um dos maiores destaques do 1º Festival de Cinema Russo. Exilado numa propriedade rural, na qual cuida dos animais, um veterinário se depara com ameaças a esse recanto tido como lar acolhedor. Nos dois longas, personagens fortes, insinuações e simbolismos substituem uma abordagem meramente objetiva e atingem resultados potentes, dos que convidam o espectador a completar lacunas e a vivenciar tudo.

Entre os oito filmes selecionados para o 1º Festival de Cinema Russo, alguns demonstraram reverência a certas tradições da cinematografia local, não apenas no que diz respeito aos aspectos formais, mas quanto à valorização de verdadeiros emblemas da cultural local. Bolshoi (2017), por exemplo, não esconde a sua vontade de filiar-se aos lugares-comuns do filme de balé justamente para reverenciar esse tipo de narrativa propensa a dramas sobre ascensões, decepções, corrupções e quedas. O ritmo vagaroso, com longas sequências, não necessariamente condicionadas por uma ação imediata, também é percebido em O Francês (2019), drama histórico que, de maneira diferente, vai observar aspectos essenciais da Rússia, sobretudo a relação do país socialista com a predominância capitalista na Europa do fim dos anos 1950. Esses dois filmes são similares por conta de uma solenidade reinante na narrativa, em virtude de certo tom de oficialidade, empregados como atributos de enfrentamento de engrenagens que são caras ao país. Portanto, são exemplares, cada um a seu modo, reverentes e até subservientes ao passado.

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Cena de “O Francês”


Considerações Finais
Num ano em que vimos o streaming ganhar uma relevância maior na nossa relação com o audiovisual, o 1º Festival de Cinema Russo foi uma das novidades auspiciosas. Imprescindível para expandirmos horizontes cinematográficos, o contato com obras que não contam com orçamentos de lançamento astronômico ou que acabam perdidas nesse jogo comercial dos lançamentos é de suma importância. A Roskino certamente plantou uma semente que tende a dar ótimos frutos. Não se sabe ainda como vivenciaremos 2021, mas desde já a torcida é para termos a segunda edição do Festival Russo de Cinema. Afinal de contas, não podemos ficar alheios a uma cinematografia desse calibre.

Em tempo, reiteramos o convite para você conferir a nossa entrevista exclusiva com a cineasta Nataliya Meshchaninova sobre Arritmia e O Coração do Mundo. Esse Papo de Cinema você lê aqui.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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