“Caros amigos, gostaria de compartilhar com vocês que sou transexual, meus pronomes são ‘ele’ e ‘eles’, e meu nome é Elliot. Eu tenho sorte de poder escrever isso, e ter chegado a esse momento em minha vida. […] Eu amo o fato de ser transexual. E eu amo o fato de ser queer. Quanto mais eu me percebo e aceito por completo quem sou, mais o meu coração cresce e eu me realizo. Para todas as pessoas transexuais que lidam com perseguição, baixa autoestima, abusos e ameaça de violência diariamente: eu vejo vocês, eu amo vocês e eu farei tudo o que puder para mudar este mundo para melhor”.
Elliot Page é um homem transexual. Conhecido até então como Ellen Page, o ator de Juno (2007), A Origem (2010), X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (2014) e Tallulah (2016) revelou ao mundo sua identidade de gênero, com notável clareza e ternura. Reivindicou o respeito à sua identidade, e também à tolerância em relação a todos os indivíduos transexuais. Reconheceu imediatamente seus privilégios pela exposição em Hollywood, assumindo a bandeira da luta pela inclusão e contra as violências. Ele menciona, na carta divulgada via redes sociais, o número absurdo de casos de agressão e de suicídio envolvendo pessoas trans. O Brasil, por acaso, constitui o país com maior número de assassinatos de transexuais no mundo, motivados e/ou amparadas no discurso LGBTfóbico do presidente.
É preciso uma coragem ímpar para viver sua transexualidade de maneira aberta, inclusive para um ator de renome, com tanto a perder. Quantos filmes estrelados por atores e atrizes transexuais você conhece? Dirigidos por pessoas trans, produzidos por pessoas trans? Comemoramos títulos como os brasileiros Marie (2019), Alice Júnior (2019) e Valentina (2020), ou o chileno Uma Mulher Fantástica (2017) e os americanos Tangerine (2015) e Revelação (2020) pelo fato de constituírem as exceções que comprovam a regra. Percebemos de imediato a presença de pessoas transexuais em destaque nos filmes porque ainda representam uma raridade. O mesmo vale para Elliot: ele desbrava o caminho rumo à aceitação de profissionais trans no audiovisual – iniciado em Hollywood por nomes como as irmãs Lana Wachowski e Lilly Wachowski, vale lembrar.
Uma das conquistas do posicionamento de Elliot diz respeito ao reconhecimento dos talentos de pessoas trans. Ele vinha interpretando papéis de pessoas cisgênero com alto grau técnico, sendo reconhecido por suas habilidades dramáticas. Deste modo, não precisaria ser restrito aos raríssimos papéis de pessoas trans no cinema. (Ainda que, no caso contrário, espera-se que somente pessoas transexuais interpretem personagens trans. Não há equivalência possível quando apenas um dos lados sofre discriminação por ser quem é). Elliot comprova o espaço das pessoas trans enquanto ídolos, figuras de afeto, cuja palavra é escutada e seguida. Ele possui influência midiática, tendo militado pelos direitos LGBTQ há anos, independentemente da sigla com a qual se identificasse. Percebemos a necessidade de estampar a admiração por mais indivíduos trans, ocupando todos os espaços públicos e políticos.
“Ah, mas ele decidiu do dia para a noite mudar de gênero e agora preciso prestar atenção aos pronomes para não ofendê-lo?”, escuta-se nos círculos transfóbicos. Não, Elliot não “decidiu” sua identidade do dia para a noite. Sim, precisamos tomar cuidado constante no tratamento dele – esse é o mínimo que devemos à comunidade trans, enquanto indivíduos cisgênero. Quando um jovem trans toma a coragem de anunciar sua identidade ao mundo, ele não formula essa concepção num gesto irrefletido. Ninguém “escolhe” ser marginalizado, oprimido e agredido graças a modismos. Em paralelo, quando uma pessoa gay ou lésbica assume sua orientação para colegas e familiares, a revelação não implica num ato impulsivo, muito pelo contrário. Às vezes, o segredo é guardado durante décadas; algumas pessoas jamais conseguirão se realizar. Em geral, sofre-se muito com o medo, a baixa autoestima e o preconceito, até se conquistar os meios (psicológicos e estruturais) de reconhecer sua essência.
Elliot não “virou trans”. Ele sempre o foi. Mas nós, espectadores e fãs, o descobrimos agora, não cabendo a nós cobrar explicações do ator quanto ao tempo desta revelação. É preciso ter empatia para compreender a mistura de alívio e receio de se expor publicamente. Elliot conseguiu falar sobre si mesmo em 2020, e o parabenizamos por isso. Os motivos pelos quais não o fez antes dizem respeito apenas a ele, ainda que a responsabilidade pelo silenciamento de pessoas trans pertença a nós, pessoas cis. Por nossas piadas, desprezo, discriminações no trabalho e na esfera afetiva, reforçamos a noção de que a transexualidade (assim como, em menor medida, a homossexualidade e a bissexualidade) seria vergonhosa, um disfarce ou falsidade, além de uma identidade inferior à cisgeneridade. Através da normalização de crimes que não geram indignação, há uma forma de violência cotidiana que teimamos em admitir.
“Ah, mas isso não existia na minha época. Homem era homem, e mulher era mulher”. É comum expandir a vivência íntima à visão de mundo: se eu não sofro transfobia, a transfobia não existe. Se não sofro racismo, racismo não existe, ou não seria uma prioridade social. É vitimismo, mimimi. A partir do momento que a dor do outro não dói em mim, desenhamos uma sociedade doente. Sempre houve pessoas LGBT, desde que o mundo é mundo. Há relatos de prazeres homossexuais nos mais antigos textos literários, dentro de civilizações clássicas. Pessoas que se identificam com um gênero diferente daquele imposto no nascimento marcam as narrações desde que possuímos registro para tal. No entanto, a história dessas pessoas tem sido destruída ao longo dos séculos. Agora, gradativamente, desenvolvemos termos adequados para respeitar estas vivências particulares (e a linguagem deveria se adaptar à cultura onde se insere, certo?). Abre-se uma pequena brecha, ainda extremamente tímida, para que possam viver felizes como são.
Tenho ciência de que escrevo este artigo a partir da vivência de um homem cisgênero e branco, o que automaticamente me coloca em posição de privilégio social. Jamais saberei em que consiste o cotidiano de uma pessoa transexual, e nunca ousaria falar em nome delas. No entanto, posso me dirigir a outras pessoas cisgênero, que constituem uma maioria numérica e a maioria esmagadora em termos de poder. Abracemos iniciativas como aquela de Elliot, de Laverne Cox, de Bianca Leigh, de Alexandra Billings, de travestis, transexuais e transgêneres do mundo inteiro. O ator deu um passo imenso que apenas pessoas trans podem efetuar por si mesmas, reclamando por direitos civis e reparação social se assim o desejarem. Nós podemos fazer o que nos cabe: respeitar (não apenas “tolerar”), incentivar, tratar de igual para igual, respeitar os pronomes, nos abrir aos afetos (amizade, romance, família) de pessoas trans, e oferecer nosso afeto em troca. Podemos assistir aos seus filmes com respeito, prestigiar o trabalho, contribuir às reivindicações para que estes indivíduos trabalhem, estudem, e tenham o devido reconhecimento por isso. Podemos estimular a inclusão e tornar o ambiente mais acolhedor para exemplos como o do ator canadense. Bem-vindo, Elliot Page.
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Excelente artigo!