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Certa vez, Alfred Hitchcock disse que não era prudente adaptar as obras-primas da literatura aos cinemas. O britânico defendia o aproveitamento de livros “baratos”, cujas tramas tivessem elementos a serem engrandecidos cinematograficamente. E isso foi algo que ele fez inúmeras vezes durante a sua brilhante carreira. Raras foram as exceções de matrizes literárias consideradas excepcionais que renderam bons filmes, por inúmeras razões. Mas, essa posição do bom e velho Hitch me vem à cabeça sempre que leio a notícia da refilmagem de um filme maiúsculo. Diferenças à parte, não me parece prudente (necessário?) refazer o que já é enorme, ainda mais levando em consideração que os filmes não perdem validade com o passar do tempo, pelo contrário, pois adquirem certa aura de artefato histórico valioso. Em 1951, num momento de baixa em sua prodigiosa carreira, o cineasta estadunidense Joseph Losey aceitou um projeto arriscado: fazer a versão made in USA de M: O Vampiro de Düsseldorf (1931), um dos grandes trabalhos alemães de Fritz Lang, uma das joias do Expressionismo da antiga República de Weimar. Em sã consciência poucos topariam essa furada, mas Losey a aceitou. E, conforme consta nos bastidores, não poderia inventar muito, ou seja, era basicamente refazer o original, desde que tudo fosse falado no bom e velho inglês.

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Uma obra-prima dos anos 1930
Antes de falar do remake, vou comentar um pouco aqui sobre o original. Aliás, se você ainda não assistiu a M: O Vampiro de Düsseldorf, coloque na sua lista de próximas prioridades, pois se trata de uma experiência intensa, para dizer o mínimo. A trama mostra a caça ao assassino de crianças à solta na cidade que consta do título do longa-metragem do vienense Fritz Lang. Quando o filme começa, o terror está instaurado. Algumas vítimas foram encontradas e o cenário que nos é apresentado é o de uma comunidade aterrorizada. Lang acentua essa sensação coletiva pela forma como mostra a movimentação do assassino. Sua primeira aparição é uma aula de síntese e potência cinematográfica. Uma menina se aproxima inocentemente de um poste e começa a bater bola contra o cartaz que avisa aos passantes justamente do perigo que os pequenos estão correndo. O enquadramento suprime a criança, deixando apenas que vejamos o lambe-lambe sendo açoitado pela bola que entra e sai do quadro num movimento de efeito ambíguo. E esse quadro é ameaçadoramente invadido pela sombra do personagem de Peter Lorre. Um primor, aliás, como será toda essa observação do bandido, geralmente de costas, como se ele intuitivamente, mas sem sucesso, escondesse o rosto da câmera. Mas, sua identidade não é ignorada por nós.

Essa invasão do quadro pela sombra é interessante de ser entendida como recorrência no Expressionismo Alemão, um movimento de vanguarda cujas obras frequentemente utilizaram figuras/cenários/personalidades distorcidos para refletir sobre a Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial. O personagem de Lorre é, portanto, herdeiro de uma tradição de criaturas abjetas que vão do duo Caligari/Cesare de O Gabinete do Dr. Caligari (1920) ao vampiro de Nosferatu (1922). Contudo, após a fase dos monstros literais como metáforas de um país em período de transição nefasto que chocaria o ovo da serpente (nazismo), Lorre vive um sujeito capaz de atos abomináveis, mas humano, demasiadamente humano. Tanto em que em sua brilhante fala durante o julgamento promovido pela escória da cidade ele se defende tendo como escudo a sua natureza. Diferentemente daquela gente que se acha no direito de decidir se ele vive ou morre, ele  é impelido pela doença mental a cometer crimes hediondos. Mas, retratos psicológicos à parte, Fritz Lang elege a cidade de Düsseldorf como seu verdadeiro objeto de estudo. A câmera passeia por vários cenários atendo-se à diversidade, mostrando os conjuntos de apartamentos apinhados, os bares do submundo, os espaços consagrados à aplicação da lei, além o covil dos bandidos. O suspense não prejudica a documentação de uma realidade, pelo contrário, pois adiciona a ela uma considerável carga de tensão e medo.

Há muito o que falar de M: O Vampiro de Düsseldorf, mas para que este artigo não fique longo demais, vou me ater ao movimento que leva à captura do personagem de Peter Lorre. A existência da ameaça às crianças acaba sendo maléfica a todos. Aos pequenos, por motivos óbvios; à polícia, pois a obriga a turnos de trabalho esgotantes; e ao submundo, pois a movimentação excessiva dos homens da lei prejudica os negócios escusos, assim como a vida noturna repleta de pequenas transgressões. Os chefões do banditismo resolvem montar uma força tarefa para prender o matador de crianças, acabando eles próprios com o problema. Assim, provavelmente abrem caminho para o retorno da normalidade, ou seja, com a polícia afrouxando a vigilância e as contravenções podendo novamente reinar. Fritz Lang é meticuloso no desenho da abrangência do crime, haja vista o retrato minucioso do processo de envolver mendigos e outros personagens espalhados pela cidade na rede bastante sintomática dessa amplitude. Eles chegam antes da polícia, pegam o homicida e resolvem julga-lo no tribunal improvisado, mimetizando engrenagens que os veem como rejeitos. Uma crítica social/humana ácida. Um filme que tem lugar cativo entre os grandes.

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A refilmagem nos anos 1950
Há algumas boas razões para se fazer um remake. Atualizar questões de acordo com a época vigente é uma delas. Por mais que muita gente atualmente “cobre” dos exemplares antigos que eles tenham uma consciência alinhada à nossa contemporaneidade – o que é uma aberração –, filmes são documentos dos tempos em que nasceram. Portanto, observar as mesmas questões por prismas “atualizados” é um bom advogado de defesa das famigeradas refilmagens. Transpor lógicas para outra cultura igualmente se enquadra nesse rol de “boas desculpas”. Por exemplo, há certas questões abordadas de forma X numa comunidade, mas encaradas de modo Y em outras tantas. Nesse sentido, um assassino de crianças surgido numa cidade ainda afetada pela ressaca da guerra, num país germânico que saiu perdedor do conflito, pode ser encarado de maneira muito diferente da sua versão que aparece numa metrópole solar de um país que recentemente saiu como vencedor de uma guerra mundial. No entanto, conforme constam nos autos dos bastidores de Hollywood, Joseph Losey não teve tanta liberdade quanto gostaria para fazer alterações e, talvez, tornar a sua versão menos que uma tentativa de “americanizar” no sentido mais superficial. Mas, que fique claro: também não há registros de que filme M: O Maldito (1951) seria caso ele tivesse a possibilidade de fazer o que bem entender a partir do original. Ele apenas posteriormente iria se tornar um cineasta plenamente reconhecido no meio.

Em vários sentidos, M: O Maldito é reverente a M: O Vampiro de Düsseldorf, sobretudo quando praticamente repete composições de quadros do filme de Fritz Lang. No entanto, Losey sempre dá um jeito de acrescentar algo – para o bem e para o mal. Por exemplo, na cena da mãe angustiada pelo atraso da filha que já deveria ter chegado da escola. Ele reprisa o plano zenital no vão das escadas do prédio, mas faz questão de oferecer um contraplano visto de baixo. Aliás, essa mãe ganha bem mais relevo do que a equivalente do original alemão. Quando o assassino agora vivido por David Wayne para num estabelecimento para tomar café, a câmera copia o filme de Lang ao mostra-lo por meio do vão na cerca viva, mas toma a liberdade de avançar e anular essa moldura antes de a tomada acabar. Aliás, o assassino, que no original pede uísque, aqui apenas recorre à bebida alcoólica quando o desespero bate – exageradamente expressado pelo ator, aos gritos, diga-se de passagem. No longa-metragem norte-americano, a fidelidade é apenas brevemente colocada em xeque, mas em instantes nos quais é possível identificar um prisma evidentemente distinto. No entanto, ainda que explore lindamente os exteriores, o cineasta estadunidense não consegue imprimir ao resultado uma sensação de documentação coletiva. O contexto é muito subserviente à intriga, não o contrário. E isso empobrece o todo, inclusive por evitar a cidade como um personagem importante da trama.

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Mas, a principal mudança apresentada por M: O Maldito diz respeito a algo que em M: O Vampiro de Düsseldorf é central. Além da indisposição para tornar o entorno um organismo mais vivo, Losey faz do encerramento um instante, no mínimo, estranho. Em que pese o abismo entre a interpretação exasperada de Peter Lorre e a composição apenas adequada de David Wayne, Joseph Losey evita desenhar um paralelo intenso entre as buscas policiais e as similares dos bandidos. Inclusive não repete a maravilhosa montagem paralela das reuniões à mesa que evidenciam essa noção no longa alemão. No instante da captura, a cena do filme de Lang é mais tensa/densa, com o bandido sendo julgado brutalmente por seus pares num teatro de absurdos. No exemplar norte-americano, essa ocasião é repleta de discursos moralistas, inclusive com o chefão da marginalidade local defendendo que se entregue o alvo à polícia, assim sendo muito menos dúbio do que a matriz germânica. E essa mudança desgasta a complexidade do instante, pois o priva justamente do grotesco. Porém, ainda que o resultado do remake seja de certo modo decepcionante em comparação ao original, ele guarda elementos nas entrelinhas sobre a famigerada caça aos comunistas empreendidas nos bastidores da Hollywood daquele tempo, haja vista o relevo conferido à perseguição e principalmente o discurso do advogado bêbado. No entanto, nem uma das “boas razões” para a refilmagem é plenamente contemplada. Mas, é interessante entender dois gênios a partir da mesma premissa.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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