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Em poucas semanas, tudo mudou. E não me refiro às óbvias mudanças de rotina decorrentes do isolamento social, nem mesmo na contradição existente em se separar para proteger os demais, mas sim em relação às consequências de tal ruptura. Em Veneza, a ausência dos turistas habituais fez com que a água voltasse a ser tão cristalina ao ponto dos peixes, olha só!, retornarem ao convívio. No Brasil, a Petrobras diminuiu a produção de petróleo porque não há demanda para tanto. Nos Estados Unidos, o único cinema em funcionamento no estado do Texas era um… drive-in.

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Cena de “Loucuras de Verão”: repare na placa do carro amarelo, referência a outro filme dirigido por George Lucas

 

Sucesso absoluto na metade do século passado e praticamente esquecido nos dias atuais, o drive-in foi ícone comportamental de uma época – que o diga Loucuras de Verão (1973), que rendeu ao ainda iniciante George Lucas sua primeira indicação ao Oscar. No auge da expansão automotiva, ir nele era quase uma extensão natural para aqueles que de tudo faziam a bordo de um carro – de tudo MESMO, vale lembrar que o drive-in jamais foi local de interesse apenas no que era exibido. Com sua tela gigante e som transmitido através das ondas do rádio, havia ali um charme intrínseco ao fato de se assistir a um filme ao ar livre, em uma experiência tanto coletiva quanto individualizada, ao menos entre aqueles que estavam dentro de cada carro.

No Brasil, logo as principais capitais encamparam seus próprios drive-ins e, um a um, (quase) todos fecharam com o passar dos anos. O sobrevivente reside em Brasília, virou patrimônio cultural e até mesmo estrela de cinema: O Último Cine Drive-in (2015), premiado nos festivais de Gramado e do Rio, foi nele rodado. Trata-se do símbolo de uma época esquecida, que teima em resistir para nos lembrar do que fomos.

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Cena de “O Último Cine Drive-in”, disponível na Netflix

 

Com o encerramento de praticamente todo o circuito cinematográfico também nos Estados Unidos, os drive-ins retornaram ao noticiário por serem a estrela maior de um ranking de bilheterias quase irrisório. Em Austin, no Texas, o funcionamento resultou em uma situação, no mínimo, inusitada: seu dono ofereceu que os filmes previstos no South by Southwest, cancelado devido à pandemia de coronavírus, lá fossem exibidos. Era a chance para que ao menos o público local pudesse vê-los. Se era até previsível que os produtores dos longas recusassem tal oferta, de olho em possíveis exibições em outros festivais ou mesmo no ineditismo comercial, os diretores de curtas ficaram eufóricos com tal proposta. Batizada como SXSocial Distance, a sessão especial apenas com os curtas do SxSW garantiu quatro datas aos realizadores.

“Nunca pensei que diria isto, mas literalmente somos o único cinema em funcionamento em Austin e nas áreas ao redor. Para muitos, é um meio de revalidar a importância dos drive-ins para a sociedade”, disse Josh Frank, dono do Blue Starlite Mini Urban Drive-in, em entrevista concedida ao IndieWire.

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O Blue Starlite Mini Urban Drive-in, localizado em Austin, Texas

 

Devido ao agravamento da pandemia nos Estados Unidos, nem mesmo os drive-ins resistiram: o Blue Starlite está fechado, ao menos até 14 de abril. Mesmo momentâneo, seu brilhareco faz pensar não apenas no que fomos, mas, especialmente, no porquê de não sermos mais. Ecos de um mundo que já não existe, e ao qual não será mais possível retornar. Em poucas semanas, tudo mudou.

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Jornalista e crítico de cinema. Fundador e editor-chefe do AdoroCinema por 19 anos, integrante da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro), autor de textos nos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros", "Documentário Brasileiro - 100 Filmes Essenciais", "Animação Brasileira - 100 Filmes Essenciais" e "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais". Situado em Lisboa, é editor em Portugal do Papo de Cinema.
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