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Opinião : É necessário que artistas falem de política

Publicado por
Marcelo Müller

Realmente, vivemos um momento conturbadíssimo no Brasil. No mundo, aliás. Afora as questões que envolvem a pandemia do COVID-19, bem como a má vontade do governo federal para deixar de lado egos e projetos pessoais de poder em prol de ações de combate à doença que vem vitimando centenas diariamente, o clima de polarização que fratura o país não parece dar sinais de fadiga. Há não muitos anos, falar de política soava como “coisa de gente chata”. Era bem comum ouvir por aí nos grupos de conversa: “não gosto de política”. Poderia ficar aqui discorrendo sobre os motivos que levavam a essa posição de desconexão das pessoas com a arte/ciência que tange à governança dos povos, sendo esta não redutível à esfera partidária. Também é tentador mencionar a quais grupos interessa justamente a alienação que não arrefeceu, mas que ganhou outros contornos. Não é porque atualmente a política se tornou um tema cotidiano, facilmente identificável até nos intervalos daquela nossa roda de samba favorita, que as coisas estão às mil maravilhas. Porém, é melhor falar do que calar. Isso, obviamente, com algum embasamento.

Dia desses, navegando despretensiosamente pelo Instagram, deparei-me com o perfil do cantor e compositor Ed Motta, no qual ele publicou um vídeo antigo (de 2015). O conteúdo era uma liderança indígena fazendo um apelo desesperado. Imaginando o que viria pela frente, comecei a navegar pelos comentários e me defrontei com um que motivou a escrita do presente artigo: “Saudade do tempo em que artistas apenas faziam sua arte, não ficavam falando de política”. Pensei, cá com meus botões: ou as pessoas estão fartas do conteúdo político que permeia todas as esferas cotidianas, agora de modo mais evidente, ou o fã resolveu se posicionar contrário à manifestação do artista simplesmente por não concordar com a postura ideológica dele. A segunda opção parece a mais provável, infelizmente, sobretudo a julgar por experiências desgostosas com outras passeadas em comentários de postagens de teor controverso. Aliás, nunca leia os comentários de uma publicação dessas, pois entre robôs e mal intencionados de ocasião, há posturas de arrepiar os cabelos, até de quem não os tem. Mas, voltemos ao assunto principal.

Muitos identificam o termo “política” estritamente com algo relacionado à organização das siglas partidárias. Mas, o buraco é bem mais embaixo. Política é o que mantém relação com a organização e o desenvolvimento das comunidades. Portanto, basicamente tudo o que fazemos é político, inclusive o gesto de isentar-se de tocar no assunto. Não há como escapar de fazer política, exatamente porque nossas ações, omissões e manifestações impactam direta ou indiretamente no cotidiano de quem está ao redor ou, dependendo do alcance do emissor, até no de grupos geograficamente separados. Quando vamos ao Facebook defender que casais homossexuais desfrutem dos mesmos direitos civis dos heterossexuais? Política. Nos instantes em que abraçamos publicamente causas ou assim o fazemos com condutas não necessariamente a reboque de discursos verbais e afins? Política também. Aliás, as ações nos definem como seres políticos bem mais do que as palavras, porque estas podem ser facilmente proferidas de modo vazio e oportunista. Então, senhoras e senhores, logo, a expressão artística é naturalmente política.

Porém, vamos lá. Não parece, mas o foco segue sendo a urgência do artista falar sobre política. Por que, cargas d’água, mesmo os que não têm essa compreensão do caráter intrinsecamente político da arte, se incomodam quando seu cantor favorito, sua atriz outrora admirada e o pintor antes tido como referência cumprem seus papeis elementares ao promover debates importantes? Para começo de conversa, num stricto sensu, artistas são cidadãos como quaisquer outros, ou seja, têm direito constitucional de manifestar-se, tal como bombeiros, motoristas, jornalistas, enfim, como qualquer integrante da pólis. Mas, o título do presente artigo pressupõe uma necessidade. Acredito que, especialmente em momentos históricos como o nosso, nos quais ideologias extremistas regem o Brasil fazendo uso de condutas inacreditáveis, como o negacionismo e o terraplanismo, isso sem contar a naturalização das violências e das repressões a grupos minoritários, se torna mais que pertinente que os artistas, do alto da notoriedade e da respeitabilidade que os caracterizam, promovam determinadas pautas à tona, as reverberando.

Nessa discussão é possível também perder-se na reflexão acerca da profundidade das intenções dos artistas que se expressam publicamente favoráveis a A ou B. Numa lógica capitalista, em que praticamente tudo parece visar lucratividade direta ou indireta, realmente é bom manter o pé atrás. Mas, principalmente os artistas de alcance massivo, como Anitta, por exemplo, têm um dever especial com os milhões que lhes seguem nas redes sociais, com aqueles que os elevam aos panteões de adoração. E a cantora vem fazendo um importante trabalho de conscientização na sua conta do Instagram, colocando dúvidas pertinentes sobre o básico, ajudando a dirimir as ignorâncias nossas de cada dia por meio de sua interlocução com a jornalista Gabriela Prioli. Mesmo Regina Duarte, “convidada” recentemente a sair da secretaria especial da Cultura, ou até o “ilustre” Mário Frias, seu substituto – que considera Jair Bolsonaro o maior presidente da nossa História (oi?) – tem o direito/dever de se posicionar. Inclusive as ideias divergentes da classe artística nesse campo costumam gerar debates duros, mas de vital relevância.

Todo cidadão deveria falar sobre política, claro, depois de inteirar-se minimamente do assunto, não vomitando achismos em tons de ameaça. Identificar-se mais com a direita ou a esquerda vai das pautas consideradas prioritárias por cada um. Mas, então porque aos artistas essa manifestação tenderia à necessidade? Porque, uma vez entendidos os pormenores que, somados, constituem a política como uma esfera ampla e essencial a qualquer sociedade do mundo, da mais a menos economicamente desenvolvida, é preciso que essas figuras admiradas, tidas por muitos como modelares, deem o exemplo. Ou vocês acham que se uma cantora carismática, capaz de atingir as massas, como Ivete Sangalo, se propusesse a entrar nesse terreno espinhoso, assim demonstrando coragem, ao menos seus fãs não parariam para pensar ou questionar determinadas coisas? Não se trata de eleger artistas como porta-vozes irrefutáveis, mas de entender o enorme compromisso que eles têm com o público que os incensa e, às vezes, os enriquece. E isso passa por posicionar-se, sobretudo nestes nossos dias conturbados e de ameaças.

Mas, é preciso coragem. Obviamente, muitos artistas não se colocam politicamente em público por medo de perder clientes. Simples assim, sem rodeios. Sim, pois, você acha que se a Ivete Sangalo – volto a mencioná-la por me parecer acintoso o silêncio da baiana diante de tantas arbitrariedades recentes – porventura se posicionasse contra a cloroquina, se combatesse a homofobia e o feminicídio em suas lives milionárias ou se criticasse um presidente que acredita na inferioridade da mulher e na importância de preservar o poder nas mãos dos coronéis, ela não perderia ouvintes bolsominions? Claro que sim. Mas, será que deixar de falar, ou seja, isentar-se por receio de ser tachada “comunista”, não é um evidente atestado de conveniente covardia? Obviamente, partindo do pressuposto de que a cantora não reza pela mesma cartilha do presidente. A partir do momento em que causas como a indígena, a LGBTQI+, a social, a racial, entre tantas que contemplam a diversidade, são defendidas pelos membros mais à esquerda da coletividade, colocar-se irremediavelmente à direita seria virar as costas a essas lutas? Nem tanto ao céu ou ao inferno? Tais perguntas merecem mais reflexão do que necessariamente respostas peremptórias. Então, fica o convite, caros artistas. Nos ajudem a pensar sobre isso. Não é hora de neutralidade, pois ela atesta indiferença.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.