O cinema nasceu oficialmente no dia 28 de dezembro de 1895, durante o programa de cerca de 40 minutos, formado por vários curtas-metragens, organizado em Paris pelos irmãos Louis e Auguste Lumière. O marco é assim entendido porque se tratou da primeira projeção pública, paga e bem-sucedida. Portanto, a Sétima Arte oficialmente respirou pela primeira vez quando o negócio depois entendido como exibição aconteceu. Evidentemente, houve outras demonstrações anteriores, mas elas nunca apresentaram os três pilares considerados essenciais ao negócio. Nem vamos mencionar traquitanas e dispositivos compreendidos como pré-cinema e afins. Tendo como ponto de partida esse modelo, pode causar estranheza no leitor o 19 de junho afirmado como o Dia do Cinema Brasileiro. É uma referência à data em 1898, quando aconteceu a primeira filmagem aqui. Já a sessão inaugural foi bem antes, no dia 8 de julho de 1896, no Rio de Janeiro, por iniciativa do belga Henri Paillie. Essa discrepância historiográfica é muito bem destrinchada no livro Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro, do também belga Jean-Claude Bernardet.
Discrepâncias à parte quanto ao entendimento das pedras fundamentais, o nosso cinema nasceu então “oficialmente” quando o exibidor/cinegrafista ítalo-brasileiro Affonso Segretto – que também viria a ser produtor – supostamente registrou as primeiras imagens cinematográficas em solo brasileiro. A bordo no navio francês ironicamente batizado Brésil, ele teria feito tomadas ao entrar na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Mas, há incerteza quanto à existência desse filme inaugural. Os documentos que ganharam vulto comprobatório ao longo das décadas foram os recortes de jornais noticiando o feito. Porém, foi o Paschoal Segreto, irmão de Affonso, quem reportou aos periódicos a novidade. Adhemar Gonzaga, nos anos 1930, investigando a veracidade do episódio, encontrou apenas confirmações de que Affonso portava câmeras a bordo do transatlântico. A data, moldável a diversos interesses ideológicos e conveniente para um embasamento linear, foi adotada pelos pesquisadores nos anos 50 e 60. Falar das coisas nossas, naquele momento, parecia mais importante para definir a pedra fundamental.
É provável que o nosso cinema tenha nascido de uma fake news. Não há sequer resquícios do filme de Affonso Segretto. Todavia, sigamos. Num rasante à posteridade percebemos euforias iniciais constantemente afrontadas pela concorrência estrangeira, esta cada vez mais desleal dentro do mercado global. País de proporções continentais, o Brasil nem ao menos tinha distribuição de energia elétrica confiável para oferecer ao cinema, nos primórdios, as condições básicas ao seu desenvolvimento. Até por isso, Rio de Janeiro e São Paulo saíram na dianteira. Das exibições itinerantes à tendência ao sedentarismo, o cinema foi se assentando como possibilidade artística e econômica. A Primeira Guerra Mundial encareceu a matéria-prima. Os estrangeiros tinham diferencial competitivo para dominar o mercado e assim a gente foi, aos trancos e barrancos, na luta contra nações desenvolvidas que desejavam novamente nos colonizar, mas por meio da imagem. A chegada do sonoro apresentou suas dificuldades. Foram necessários quase 10 anos para o nosso parque exibidor se adequar satisfatoriamente aos famigerados talkies.
Governos tentaram utilizar o cinema como ferramenta educativa (com um viés bastante conservador, diga-se). Nos anos 1930 criou-se o INCE, o Instituto Nacional do Cinema. A Cinédia vislumbrou a viabilidade nestas terras do sistema de estúdios copiado dos EUA. Produtores independentes surgiram; mecenas investiram na nossa atividade cinematográfica; veio o sucesso popular da Atlântica e a derrocada da Vera Cruz; desenhou-se o protagonismo da TV; o Cinema Novo não conseguiu mobilizar as massas, embora tenha nos colocado de modo consistente e lindo no mapa mundial; o Cinema Marginal enfrentou o AI5; as pornochanchadas fizeram as pazes entre os nossos filmes e o público; teve a nova tentativa do Estado de atuar no mercado, via Embrafilme. Ufa. A história do Cinema Brasileiro é feita de tantas flutuações quantas cabem nos humores dessa nação fadada a ciclicamente seguir linhas autoritárias. E a Sétima Arte com sangue tupinambá e tupiniquim viveu, ao longo de mais de 100 anos, constantes mortes e ressurreições. Ou você acha que quando Fernando Collor de Mello, o primeiro eleito presidente da república pelo voto direto após quase 30 anos, decretou o encerramento da produção, isso era necessariamente uma novidade?
O Cinema Brasileiro é um bravo guerreiro, remanescente de um caminho de fins passageiros e recomeços simbólicos. Cada novo início traz a esperança. Com o advento de políticas públicas, em 1995 Carlota Joaquina: Princesa do Brazil disse que estávamos de volta, retorno chancelado por mais de um milhão de pagantes que conferiram a deliciosa chanchada folhetinesca na telona. Após mais de três décadas, O Quatrilho (1995) nos levava mais uma vez ao Oscar. Na esteira, êxitos em festivais de importância inquestionável, tais como Berlim, Roterdã, Cannes, Veneza, dentre outros tantos espalhados pelo mundo. Voltávamos lentamente de um dos tantos instantes de hibernação forçada. Aos poucos recuperamos espaço, criamos a duras penas uma estrutura ainda dependente das políticas públicas (e qual não é?), mas passamos a poder (re)ostentar o orgulho verde e amarelo. Porém, se olhássemos com atenção ao decurso de nossa História, talvez não teríamos sido tão desdenhosos diante da possibilidade de uma nova tempestade com contornos de furacão. O governo Jair Bolsonaro, que assumiu o país no fatídico dia 1º de janeiro de 2019, simplesmente ignorou até a rentabilidade enorme do audiovisual como indústria. Declarou uma guerra a ela.
Rapidamente, a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, passou a ser alvo de ataques institucionais. O Fundo Setorial do Audiovisual, um dos principais instrumentos de fomento, teve mecanismos inviabilizados. Bolsonaro e seus asseclas não se importaram em agravar a crise do desemprego ao asfixiar os meios de produção de filmes e séries. O que lhes importava era restringir espaços do livre pensar, evitar que as chamadas minorias ganhassem espaço, que os homens e as mulheres negras, bem como os realizadores e as realizadoras da comunidade LGBTQI+ tivessem instrumentos para gerar as próprias narrativas. Exatamente quando o Cinema Brasileiro parecia um campo fértil como nenhum outro para a exportação de vários Brasis, o nosso pouco digno presidente freou tudo, demonstrando frontalmente a sua predileção pelo autoritarismo e pela mesmice ideal às velhas e bolorentas elites que já deveriam ter perdido seus pornográficos privilégios de produção de discursos e perpetuação destes como algo duramente hegemônico. Então, lhes pergunto, consternado: há ainda o que comemorar no Dia do Cinema Brasileiro?
Mas, contrariando a minha sensação de cansaço diante dessa terra aparentemente arrasada por um desgoverno de inclinações fascistas e que, como tal, publicamente defende a instauração de um cinema ufanista, exclusivista e distante da pluralidade que nos torna tão singulares, afirmo: comemoremos. Celebremos muito essa trajetória lindíssima, embora errática e repleta de contratempos; festejemos a existência de pessoas com brios e forças suficientes para militar em prol do nosso amor incondicional e tão incompreendido no território nacional; gritemos “viva” para aqueles que se empenham diariamente no sentido de dirimir distorções que fazem tantos falarem bobagens como “cinema brasileiro é ruim e só tem putaria”; recebamos com entusiasmo cada vitória, pretérita, presente ou futura, em meio ao obscurantismo que teima em pairar sobre nosso território como um vulto; cantemos à memória dos bravos e das bravas que deixaram legados de importância incomensurável; louvemos o surgimento da geração que há de ajudar na recondução ao lugar que nos cabe. Portanto, há muito o que comemorar. Façamos força. Celebremos. Esses canalhas disfarçados de patriotas diligentes não suportam a poesia. E o nosso cinema é poético.
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