Foram curiosas, para não dizer bizarras, as escolhas dos júris oficiais do 48o Festival de Cinema de Gramado. Justamente num ano em que, devido às restrições provocadas pela pandemia de covid-19 no mundo todo, quando a programação se viu obrigada a recorrer a meios alternativos para seguir operando, com transmissão pela televisão, graças a uma parceria com o Canal Brasil, e com títulos disponíveis na plataforma de streaming da emissora, os curadores optaram por apresentar uma seleção bastante irregular, que penderam entre o hermetismo acintoso ao popularesco descartável. King Kong en Asunción, Aos Pedaços e Um Animal Amarelo, os três longas brasileiros mais premiados, são todos de estilos bastante ousados, que pouca demonstração exibem em suas narrativas em estabelecer uma maior comunicação com o público. Camilo Cavalcante, diretor do primeiro, ficou estarrecido com o anúncio de sua vitória, a ponto de não ter palavras para agradecer a escolha. Ruy Guerra, premiado como Melhor Direção pelo segundo, parabenizou, segundo ele, a “coragem” do jurados, que optaram por um filme que “muitos não conseguiriam compreender”.

 

O melhor longa “brasileiro” foi todo filmado no Paraguai e é inteiramente falado em guarani | Foto: Cleiton Thiele

Há de se pontuar, também, que de 2019 a 2020, houve em Gramado uma mudança ainda maior do que os efeitos de uma quarentena global: houve também a mudança de dois dos três curadores. No ano passado, tanto o brasileiro Rubens Ewald Filho como a argentina Eva Piwowarski, ambos críticos de cinema com longa e comprovada carreira, faleceram. Causou estranheza, no entanto, que os seus lugares foram ocupados por um jornalista, cineasta ocasional e apresentador de televisão, e por uma cantora e atriz. Pedro Bial, que se tornou famoso no Brasil inteiro como apresentador do Big Brother Brasil, e Soledad Villamil, que já lançou mais discos do que participou de filmes, vieram para fechar a trinca ao lado do jornalista Marcos Santuário. A permanência deste, no entanto, não foi suficiente para que o perfil que o festival vinha perseguindo nos últimos anos se mantivesse: o que se percebeu, pelo contrário, foi uma mudança radical de postura.

No início dos anos 1990, com o fim da Embrafilme pelo Governo Collor, Gramado se viu obrigado a convidar filmes de outras nacionalidades para continuar existindo, pelo simples fato de que não havia mais produção cinematográfica no Brasil. Com a Retomada, a partir de 1995, o cinema brasileiro começou a ganhar força, e hoje são quase 200 longas produzidos e lançados comercialmente por ano. Os representantes estrangeiros, portanto, se tornaram um incômodo dentro do festival. O melhor seria uma mostra ampla, na qual cada país vizinho pudesse escolher um representante, entre os seus melhores, para competir de igual com os demais, sem a necessidade de uma curadoria local. Ou que se criasse uma mostra única, com brasileiros, argentinos, chilenos, colombianos, uruguaios e outros latino-americanos competindo juntos. Mas não é o que acontece, e ao invés de unir, se separa. Por isso causa estranheza a premiação de King Kong en Asunción, um filme que é brasileiro apenas por ter a assinatura de um diretor e contar com um ator protagonista nascido em solo brasileiro. A trama foi inteiramente filmada no exterior, a ação é narrada em língua guarani, e o idioma da grande maioria dos diálogos é o espanhol. Um filme como esse, ser premiado em Gramado, lugar que faz questão de virar as costas aos ‘hermanos’, é, no mínimo, esquizofrênico.

 

O chileno Los Fuertes merecia no mínimo 3 kikitos, mas não ganhou nenhum | Foto: Cleiton Thiele

Isso chama ainda mais atenção ao se observar as escolhas do júri oficial de longas estrangeiros. O melhor longa das três mostras – brasileiros, latinos e gaúchos – estava nessa seleção. O chileno Los Fuertes obteve nota média de 7,2 na grade crítica do Papo de Cinema, recebeu nota 8 deste crítico que aqui escreve, e está com média 7 a partir da votação de literalmente centenas de usuários do aplicativo Letterboxd. Mesmo assim, foi completamente ignorado em Gramado, que optou por consagrar o colombiano La Frontera (média 5,9 na grade crítica e 6,6 no Letterboxd), premiado como Melhor Filme, Atriz e Roteiro. Entre os curtas, outro resultado triste: o amazonense O Barco e o Rio foi o grande vencedor pelo júri oficial – Filme, Direção, Fotografia e Direção de Arte – enquanto que o Prêmio da Crítica e o Prêmio Canal Brasil, ambos formados por seleções distintas de críticos de cinema, optou por Inabitável (escolhido apenas como Melhor Atriz e Roteiro pelo júri oficial).

Na última década, Gramado selecionou e premiou sucessos de público e de crítica, como O Som ao Redor (Direção, Som, Prêmio da Crítica e Júri Popular em 2012), Tatuagem (Filme, Ator e Trilha Sonora em 2013), A Estrada 47 (Filme e Som em 2014), Ausência (Filme, Direção, Roteiro e Trilha Sonora em 2015), BR 716 (Filme, Direção e Trilha Sonora em 2016), Como Nossos Pais (Filme, Direção, Montagem, Ator, Atriz e Atriz Coadjuvante em 2017), Benzinho (Atriz, Atriz Coadjuvante, Júri Popular e Prêmio da Crítica em 2018) e Pacarrete (Filme, Direção, Atriz, Atriz Coadjuvante, Ator Coadjuvante, Roteiro, Som e Júri Popular em 2019). Em 2020, nenhum dos sete títulos selecionados para a mostra competitiva de longas brasileiros sequer dialoga com longas como os acima mencionados.

 

Ruy Guerra foi o melhor diretor brasileiro: uma escolha tão óbvia quanto equivocada | Foto: Edison Vara

Três parecem interessados apenas no viés autoral do próprio realizador (King Kong en Asunción, Aos Pedaços e Um Animal Amarelo), um é irregular (Todos os Mortos), dois parecem saídos de uma linha de montagem, com estruturas e propostas bastante similares (Me Chama Que Eu Vou e O Samba é Primo do Jazz) e um que mira no melodrama de maneira exagerada (Por Que Você Não Chora?), Gramado, talvez por não ter tido plateia, esqueceu também do público – seja eles populares, cinéfilos, críticos ou demais realizadores. Seus vencedores saem com a láurea do evento, mas dificilmente ela será suficiente para despertar maiores curiosidades a respeito destas produções, que parecem destinadas a nichos limitados. Bem diferente do que se vinha percebendo nos últimos anos, quando se mirava um reencontro e uma ressonância maior com o espectador nacional e internacional. Um sinal de alerta foi dado, e o que resta é torcer para que seja ouvido. E como recado final, fica a mensagem: se você tiver a oportunidade, não deixe de assistir a Los Fuertes. Esse, sim, é o grande vencedor moral deste ano.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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