A lógica das redes sociais estimula as nocivas polarizações. Ao observar a divisão política que superficialmente cinde o Brasil em dois (comunistas vs bolsominions), é bom que entendamos essa dimensão restritivamente antagônica como algo característico dos embates dialéticos contemporâneos. As famigeradas áreas cinzas, nem tanto ao preto, tampouco ao branco, perdem generoso espaço no nosso cotidiano em que a comunicação é travada em meios propícios ao oito ou oitenta. Mas, vamos nos restringir (até que surja alguma digressão) ao âmbito audiovisual, uma vez que tal realidade acomete tanto o público – a priori sem compromisso diante daquilo que espinafra ou endeusa –, quanto a crítica especializada, o que é ainda mais grave, diga-se de passagem. Para começo de conversa, proponho um teste: no Facebook ou no Instagram de vocês, escrevam que acharam determinado filme “maravilhoso”, “incrível”, “o melhor da década”, ou utilizem quaisquer outras expressões inclinadas ao exagero. O contrário também vale, pois, chamar uma obra de “lixo”, “porcaria”, “uma merda sem igual” produz semelhante adesão e respostas quase imediatas. Essas manifestações intensas, cheias de palavras fortes, aumentam o engajamento. Quanto mais controversa for a sentença, maior o volume de likes, de comentários e afins. E tem gente que “vive de biscoito”.
Hoje em dia, vários usuários de redes sociais querem ser entendidos como referências em seus segmentos, ganhando o crachá virtual de “influenciadores”. Involuntária ou deliberadamente, então, os que desejam se tornar celebridades, independentemente da ressonância, acabam aderindo à lógica restritiva dos antagonismos, das hipérboles, deixando de lado a complexidade e criando verdadeiros panfletos não resistentes a uma meia dúzia de “porquês”. Gradativamente, o pensamento sobre cinema está perdendo terreno na eleição diária de novos “ícones” que se transformam em faróis (ou faroletes mixurucas) menos pelo conteúdo das análises, mais por conta de sua capacidade de angariar um séquito disposto a bater palmas a tudo que deles vêm. E, olhem como isto é perverso: o mercado do cinema é duro, competitivo, tem barreiras difíceis de serem transpostas a quem deseja manter-se financeiramente a partir dele, então muita gente pega o caminho “mais fácil”, ou seja, capricha nos enunciados de efeito, entope análises de adjetivos e engana-bobos e não perde a oportunidade de levar certos filmes/séries ao céu e defenestrar outros vários. Pena, pois a simplificação gera a falsa sensação de que se trata apenas de gostar ou não.
Peguemos uma atitude recente da Netflix como exemplo mercadológico da utilização dessa aparente “descomplicação”. Anteriormente, era possível atribuir de uma a cinco estrelas às séries e aos filmes do catálogo da empresa. Aliás, a própria limitação à cotação numérica é uma forma de reducionismo, mas desenvolver isso fica para um outro momento. Voltando ao que interessa agora. De uns tempos para cá, o sistema da gigante do streaming somente permite avaliar algo positiva ou negativamente. E existe um mundo entre o ruim e o bom, um universo completamente negligenciado dentro da polarização. Diante dos números de aprovação do Rotten Tomatoes, por exemplo, o que repercute é a nota absolutamente baixa ou a diametralmente oposta, aquela que deixa distribuidores e financiadores bastante felizes. Os 65%, os 75%, os 55% não interessam à massa ávida a “tretar” por não concordar com A ou B. A reflexão perde cada vez mais lastro nessa banalização que compreende os fenômenos somente a partir de duas possibilidades: o enorme sucesso e o retumbante fracasso. E ainda perguntamos como chegamos até aqui.
Vocês se lembram do teste no Facebook, aquele que propus há pouco? Tentem uma terceira possibilidade. Evitem os pólos e concentrem-se nas ponderações, se possível elencando coisas boas e ruins, buscando iluminar meandros. Primeiro, vocês certamente terão menos engajamento; segundo, imediatamente vai aparecer alguém tentando conduzir a conversa ao patamar da polarização, seja exaltando efusivamente as qualidades que você não “conseguiu” enxergar/valorizar ou tentando provar que sua visão é claramente limitada. Confesso que fico particularmente consternado (embora não surpreso) quando vejo profissionais da crítica de cinema se portando dessa maneira, botando lenha na fogueira da simplificação, quiçá se valendo arbitrariamente das regras espúrias de um mercado beneficiado pelo empobrecimento do pensamento crítico. Em muitos casos, caem como patinhos felizes nessa dinâmica que em nada favorece o pensar. Como disse Machado de Assis ao ser questionado sobre o ofício da crítica: “para exercê-lo é preciso bem mais do que uma simples vontade de falar à multidão”. Machadão sabia das coisas.
Se você faz parte da fatia da população que entende como contraproducente limitar a leitura dos espectros políticos a dois (como se esquerda fosse apenas uma coisa e direita idem), por que insistir em reduzir as possibilidades de leitura de uma obra de arte – ou mesmo de um produto industrial, diante do qual também é preciso atenção – a duas? Se não necessariamente AMO ou ODEIO algo, então estou fora do jogo? Mas, quem disse que quero fazer parte da peleja banal nesses espaços voláteis? Em vários instantes, as “conversas” sobre cinema mais parecem brigas territoriais, nas quais sobressai quem grita mais. No fim das contas, se trata de gente inflando seus egos frágeis e utilizando-os como air-bags para se proteger do impacto das bem-vindas discordâncias. Não deixemos que esse raciocínio de algoritmo, que o binarismo restritivo das experiências a 0 ou 1, seja transferido à forma como apreendemos os fenômenos políticos, sociais, antropológicos, artísticos, religiosos, etc. Entre o 0 e o 10 existe um mundo fascinante de possibilidades. Por favor, não esterilizem esse solo fértil com o pesticida das tolas polarizações.