Caixões vazios. Caixões enterrados com pedras, para elevar a contagem de vítimas da Covid-19. Água tônica contendo o produto base da hidroxicloroquina, servindo portanto no combate ao vírus. Hidroxicloroquina como remédio milagroso. Vermífugo como remédio milagroso. O vírus já está indo embora. O vírus é uma farsa. O vírus é uma invenção da China para controlar o mundo. O vírus é uma invenção do PT para derrubar Bolsonaro. O pneu estourou e matou o vizinho do porteiro, mas a mídia afirmou que se tratava de Covid-19. Chá de alho mata o vírus. Ingerir cândida mata o vírus. A doença não matou nenhum político nem no Brasil, nem na China. Brasil se tornou referência mundial para testagem e combate à doença. Dona Maria Letícia tinha R$256 milhões em suas contas. Uma cartilha escolar encoraja a masturbação em crianças.
Todas as notícias acima são falsas, porém ganharam forte repercussão nos últimos meses. Estes são alguns exemplos entre centenas de conteúdos falsos disseminados via WhatsApp, Facebook, sites e programas de televisão sensacionalistas. Os motivos para se espalhar uma notícia do tipo podem ser variados: a sensação de poder de um anônimo ao ver seu conteúdo viralizar, ganhar likes e comentários; o sentimento de superioridade ao enganar pessoas ingênuas, frágeis ou desesperadas (tornando-se uma nova vertente da “pegadinha” telefônica dos adolescentes de gerações passadas); a possibilidade de aplicar golpes financeiros ou ganhar alguma vantagem política com a desinformação e o cultivo da desorientação. Não por acaso, muitas das notícias listadas acima foram divulgadas por Jair Bolsonaro e/ou Donald Trump. Ao elegeram um vilão específico para um problema global sem culpados (a China, a Itália, o PT, os governadores dos Estados), retiram de si mesmos a responsabilidade pela gestão da crise, enquanto se transformam em heróis ao “desmascararem” os vilões da história.
Ainda mais interessante do que entender por que razão alguém propaga notícias falsas seria pensar no motivo que leva as pessoas a acreditarem nelas. Uma razão pode ser o desespero: em processo de luto pelos entes falecidos, familiares das vítimas de Covid-19 no norte do país se agarraram à esperança de que o enterro fosse uma farsa, e correram aos cemitérios para abrir os caixões, expondo-se à possibilidade de serem contaminados no percurso. Outras pessoas podem ser influenciadas devido ao baixo nível de instrução: é absurda a possibilidade de água tônica ajudar no vírus, entretanto, a ausência de conhecimentos básicos de química e biologia pode tornar a ideia palpável devido à necessidade de se agarrar a alguma solução, por mais improvável que seja. No entanto, indivíduos de alta escolaridade e com acesso a informações compraram as notícias da mamadeira de piroca, do kit gay, da camiseta sobre Jesus travesti e outras informações grosseiramente falsas. Quando confrontadas à farsa, muitas continuaram consumindo conteúdo das mesmas fontes de fake news, como pode ser atestado pela popularidade estável destes produtores.
Quem não tem um tio ou avó que adora consumir essas notícias sensacionalistas, contanto que correspondam às suas crenças? Aquele familiar que não se importa em descobrir o dado mentiroso, porque “esta é a minha opinião”? Uma parte da crença em boatos absurdos provém da fé. A mesma fé religiosa, que se estima ainda mais resiliente por ignorar provas em contrário, extrapolou o círculo dos padres e pastores para atingir para os políticos de predileção, os sites queridos, os influenciadores populares. Eu acredito porque quero acreditar. “Hoje tudo pode ser falso, então eu prefiro acreditar nestes sites aqui”, argumentou um familiar deste que vos escreve. A impressão de que não existe mais uma verdade, nem fatos objetivos, abre uma brecha à interpretação de que tudo possa ser verdade contanto que eu o deseje. Por mais improvável que seja, o conceito é tentador: posso moldar o mundo às minhas vontades e crenças, o que me imbui de imenso poder. Este é o mesmo preceito que permite discordar da ciência, como se pesquisas fossem apenas “uma opinião a mais” – e diante da opinião que discorda do meu desejo, prefiro me ater à minha própria verdade.
O prazer diante da notícia falsa também pode corresponder àquilo que se chama, nos estudos de audiovisual, de suspensão da descrença. Quando assistimos a um filme de ficção ou fantasia, com dinossauros destruindo parques, mestres Jedi duelando no espaço, heróis com superpoderes combatendo supervilões e tsunamis devorando todos os Estados Unidos, sabemos no fundo que nada daquilo ocorreu de fato. Parte de nós conserva a ciência de que não há pessoas com superpoderes, nem garotas sendo possuídas por espíritos malignos dentro de mansões mal-assombradas. No entanto, durante a duração do filme, estabelecemos um pacto tácito com a obra: abandonamos estes preceitos e mergulhamos no mundo da fantasia. Torcemos pelos heróis, tememos os ataques dos vilões, ficamos tristes quando nosso personagem preferido morre. O ator continua vivo, é claro. O sangue é de mentirinha. Mas na sala de cinema, imersos no escuro, diante de efeitos visuais aprimorados, boas atuações e uma linguagem treinada há mais de 120 anos na arte do convencimento, decidimos acreditar. A suspensão da descrença também corresponde a uma questão de fé, ainda que não religiosa.
Ora, em tempos de autoridade descentralizada – as instituições da igreja, da escola, dos partidos políticos e do Estado são constantemente desacreditadas -, busca-se àquela pessoa detentora da verdade, aquela a quem seguir. O culto aos políticos e grupos ideológicos que disseminam notícias falsas corresponde à suspensão da racionalidade em prol da vontade de crença. Os aspectos de diversão, distração e fuga do real, típicos do cinema, também se aplicam a este caso: quanto mais a realidade parece dura, impossível de superar, mais nos agarramos às soluções milagrosas. Neste momento, pastores de igrejas neopentecostais vendem a preços exorbitantes sementes e águas bentas que prometem curar a Covid-19. Trata-se de produtos falsos, é claro, abusando não apenas da inocência do público-alvo, mas também da fragilidade emocional – e às vezes social, financeira, estrutural – em que se os clientes (e fiéis) se encontram. Não seria magnífico se uma sementinha curasse um problema com o qual o planeta inteiro está brigando há meses?
Quando se observa a popularidade dos produtores de fake news, compreende-se os motivos pragmáticos pelos quais as classes mais altas tenham votado em partidos de direita e extrema-direita. Afinal, são estes setores que defendem seus interesses econômicos, em detrimento dos ideais de redistribuição de renda ou taxação das grandes fortunas. No entanto, as classes mais pobres, que nunca foram particularmente beneficiadas pelas medidas destes grupos, também votaram em peso em Jair Bolsonaro no Brasil, em Donald Trump nos Estados Unidos, em Marine Le Pen na França. Estas figuras representam o diferente, a sementinha curadora, o messias que vai acabar com toda a corrupção dos partidos aos quais estamos acostumados, de modo brutal e violento, e com rapidez. “Hoje qualquer político pode ser falso, então eu prefiro acreditar nesse aqui”, poderiam dizer. A banalização das divergências e a equivalência entre opostos tornam-se ferramentas perigosas da retórica política. Esquerdas trazem soluções difíceis como reforma agrária, novos modelos fiscais, impostos alternativos para subvencionar sistemas gratuitos de saúde e de ensino. Esses mecanismos exigem certo conhecimento de economia e política. É muito mais fácil descartá-los diante do político que promete “descer pau em esquerdista”, por exemplo.
O populismo da extrema-direita carrega uma linguagem muito mais acessível, assim como o sensacionalismo caça-cliques das fake news. O que é mais fácil de acreditar: que existe um remédio milagroso boicotado por governadores malvados, ou que a hidroxicloroquina ainda está sendo estudada, e que apesar de demonstrar potencial de cura, ainda provoca graves consequências cardíacas – sobretudo em conjunto com a azitromicina – além de agravar dificuldades respiratórias? O mundo da ciência, das nuances políticas, sociais e econômicas corresponde a um filme chato. Seria um daqueles dramas europeus em que “nada acontece”, em que tudo está nas entrelinhas, nos silêncios, nas sugestões. São universos de percepção austera, que exigem conhecimento e capacidade de interpretação. O mundo das fake news corresponde a um blockbuster onde tudo explode e o herói aparece no final para salvar a mocinha. É muito mais simples, mais empolgante. Assim como se escolhe um filme ao invés do outro nas salas de cinema, escolhe-se também esta versão dos fatos ao invés da outra. Entrar em pormenores é chato, é invenção, é mimimi. Chola mais, esquerdopata. A sua versão que é fake news. Vai pra Cuba.
A capacidade de crença numa configuração alternativa do mundo sempre constituiu uma das belezas da arte, o que inclui o cinema. Os filmes podem nos colocar no ponto de vista de uma criança sofrendo a perda da mãe (Central do Brasil, 1998), de um garoto tentando sobreviver na favela em meio à briga de gangues (Cidade de Deus, 2002), de um futuro próximo onde o Carnaval foi substituído por raves gospel (Divino Amor, 2019), de uma comunidade em vias de desaparecimento, tornando-se alvo de norte-americanos sádicos (Bacurau, 2019). Estes mundos refletem a nossa própria situação, podendo despertar empatia ao funcionarem enquanto metáfora da sociedade onde vivemos. A distância do real pode conduzir à reflexão, ao desejo pelo mundo retratado ou ao repúdio da distopia mostrada. Medimos a fantasia pela régua da nossa realidade: percebemos o quanto estamos distantes, ou talvez próximos até demais, do cenário descrito. A arte pode funcionar enquanto distração, mas também pode servir enquanto forma de perturbar conhecimentos, crenças e sentidos. Às vezes nos deparamos nos cinemas com ideologias das quais discordamos totalmente, e isso é ótimo. É preciso conhecer as diferenças e confrontar nossos pontos de vista a outros para desenvolvermos um raciocínio.
O que as fake news produzem é a sensação de verdade única (ou seja, a minha e do meu grupo), um reforço de que continuamos certos, sempre certos, pouco importa o que digam em contrário. Quanto mais nosso messias é atacado, mais o adoramos. Este processo reforça o ego em tempo de incertezas, e nos confina na bolha de nossa predileção. O mundo de vilões e bandidos passa a existir fora dos cinemas, nas ruas, nas casas e no governo. O meu partido está sempre certo, e o outro é um monstro devorador de criancinhas. Muitas das crenças adotadas pela sociedade atual seriam ridículas até para o padrão das ficções. Consegue imaginar um filme com as famigeradas mamadeiras de piroca fazendo parte da trama? Uma história em que uma pandemia global é resolvida com água tônica? No entanto, a necessidade de ficção, a vontade de vestir o mundo real com uma máscara (ou fantasia sexual, fantasia política, fantasia de super-herói) faz com que soem prazerosas demais para serem evitadas, boas demais para serem mentiras. O cientista social, o historiador, o indivíduo dotado de ponto de vista crítico se torna aquele colega que, diante de uma cena espetacular no cinema, interrompe sua imersão dizendo: “Isso é tudo mentira. Um carro jamais voaria daquela maneira”. Sujeito chato, poxa. Me deixa aproveitar o filme em paz.
No entanto, torna-se cada vez mais importante separar o prazer de ficção na realidade e o prazer de ficção diante da obra de arte. A sala de cinema, enquanto espaço de culto – diversas teorias o estudam enquanto tal, por reunirem anônimos voluntariamente dispostos a abandonarem o real durante duas horas – torna-se um lugar concebido para esta crença, elaborado para tal. Ele funciona enquanto extensão da brincadeira infantil, quando imaginávamos mundos fantásticos a partir de bonecos. No entanto, uma hora a brincadeira acaba. A criança pode continuar se divertindo, mas ela precisa saber que monstros não existem, que Papai Noel não existe. O adulto pode continuar se divertindo com filmes, vestindo-se com as roupas de seu personagem predileto, embora na segunda-feira volte a vestir os trajes do trabalho. A ficção apenas constitui um prazer saudável quando que se difere da realidade, servindo de contraponto a esta. Viver unicamente na fantasia de minha predileção beira o delírio, a alucinação coletiva, a loucura. Por isso, a adoração a presidentes fanáticos e violentos beira a experiência do culto, dotada o mesmo grau de perigo. O problema de se fechar em seu próprio Show de Truman (1998) é o fato de que você não controla este mundo, mas é controlado por ele. Quanto mais o universo personalizado dos prazeres reforça a impressão de força do indivíduo, mais ele transparece a real fragilidade do ego.