A primeira edição virtual do Festival Internacional de Cinema de Berlim provocou reações mistas da indústria e do público. Por um lado, a 71ª Berlinale inovou ao ser o primeiro festival entre os três maiores do mundo (junto de Cannes e Veneza) a aceitar a realização via plataformas virtuais. Além disso, a separação em duas partes (uma primeira para a crítica e a indústria, e a segunda, presencial e a céu aberto, para o público em junho) provocou uma cisão literal entre público e imprensa.
Menos filmes, novo formato
Pela primeira vez, a plateia alemã assistirá aos filmes em junho, conhecendo previamente os vencedores, enquanto a imprensa descobriu as produções selecionadas em casa, em qualidades de projeção variáveis de acordo com os dispositivos caseiros. Os títulos tiveram dificuldade de repercutir para além das críticas: foram extintos os debates, as conversas de corredor, as apostas nos favoritos. Pela primeira vez, os cineastas com filmes selecionados sequer tiveram a autorização para assistirem às obras de seus colegas.
Esta configuração decorre dos tempos de improviso: o formato proposto pelo festival garantiu o essencial, no caso, que a indústria tivesse acesso aos filmes o quanto antes para adquirir os direitos de exibição, garantindo que as salas de cinema do mundo inteiro tenham obras a exibir e que o mercado audiovisual continue movimentando a economia. Para a imprensa, era fundamental descobrir estes filmes num primeiro momento, ainda imersos na pandemia. Afinal, diversas obras discutem exatamente sobre esta temática.
O festival teve duração reduzida de dias, número limitado de filmes, e concentração maior em produções europeias. Entre os quinze filmes da mostra competitiva, seis foram alemães – um recorde absoluto. Os brasileiros podem ter lamentado o decréscimo de obras selecionadas (quatro em 2021, contra dezenove em 2020), no entanto, as restrições se aplicaram à cinematografia de todos os países, sem exceção. Os Estados Unidos sequer tiveram títulos na disputa pelo Urso de Ouro, por exemplo.
Histórias fragmentadas
Na primeira edição da Berlinale refletindo a pandemia (a 70ª edição, organizada em fevereiro de 2020, ocorreu antes da crise mundial), muitas obras abordaram direta ou indiretamente as questões do isolamento, da fragilidade psicológica e econômica. Para a nossa surpresa, o principal recurso adotado pelos criadores foi a dispersão da narrativa. No passado, períodos de crise geraram obras politicamente incisivas e explícitas, ou carregadas de violência nos filmes (morte, tortura, etc).
Em oposição, 2021 esteve repleto de comédias pandêmicas, caracterizadas pelas histórias fragmentadas, apostando na colagem do máximo de recursos possíveis. Bad Luck Banging or Loony Porn, de Radu Jude, venceu o Urso de Ouro com a proposta de uma junção caótica entre realismo (as filmagens na rua de Bucareste, com pessoas usando máscara e higienizando as mãos com álcool gel), simbolismo (o segundo ato dedicado ao “dicionário” da crise social) e paródia corrosiva (a representação do sexo explícito, a brincadeira com filmes de super-heróis, o ataque às fake news, à dependência de telefones celulares, ao obscurantismo e ao revisionismo histórico).
Em paralelo, os jurados priorizaram estas formas mais evidentes de diálogo com o real. Pobre Petite Maman, drama belíssimo de Céline Sciamma sobre as angústias familiares, porém diluídas numa proposta metafórica. O filme saiu de mãos abanando, resultando num destes casos em que as melhores obras do ano são incapazes de formar consenso entre jurados (vide os recentes Em Chamas, 2018, e Toni Erdmann, 2016, ignorados em suas respectivas edições de Cannes).
Filmes malvados, Netflix e Warner Bros.
No entanto, restou um prêmio para o fraquíssimo Forest: I See You Everywhere, filme agressivo sobre a crise social, gritando aos quatro cantos que o mundo está perdido. O júri, formado por diretores vencedores das edições anteriores, buscou a comunicação mais clara possível. A própria seleção da mostra competitiva soou mais fraca do que de costume. Os motivos são compreensíveis: diversas obras não puderam ser concluídas durante a quarentena, e alguns diretores se recusaram a liberar seus trabalhos para um festival online.
Assim, a competição trouxe uma quantidade maior de “blockbusters” do cinema de arte do que o habitual. Una Película de Policías representa a cota da Netflix na disputa pelo prêmio máximo, mas a Warner Bros. surpreendeu ao emplacar Next Door, de Daniel Brühl, na categoria principal (a obra normalmente ganharia destaque na Berlinale Special, de caráter não-competitivo). Além destes, Natural Light e Fabian: Going to the Dogs representam produções gigantescas, ainda mais extravagantes face ao ano de crise.
Os melhores filmes vieram das obras intimistas, organizadas em espaços internos, ou isoladas em plena natureza. Além do já citado Petite Maman, o francês Drift Away se concentra na perspectiva da solidão em alto mar, e o japonês Wheel of Fortune and Fantasy debate a crise nos relacionamentos, em planos fixos e cenários fechados. Apenas este último foi premiado. Entretanto, a presença de obras deste nível garantiu uma edição digna das altas exigências depositadas sobre o diretor artístico Carlo Chatrian.
O tesouro nas mostras paralelas
Este ano, as mostras paralelas se tornaram muito mais fortes do que a mostra competitiva. Enquanto esta efetuou nítidas concessões para agradar as majors e as produções locais, as mostras Encounters, Forum e Geração demonstraram maior liberdade na escolha de temas e estéticas. A Encounters, especialmente, premiou três excelentes obras que estariam entre as melhores da mostra competitiva, caso tivessem sido inseridas na disputa principal: Nous, Taste e Social Hygiene.
Nous também aposta na fragmentação de recursos e pontos de vista, a exemplo de Bad Luck Banging or Loony Porn. A diretora Alice Diop coloca em cena a si mesma, sua família, e também a história da branquitude francesa, a vida dos imigrantes na periferia, cenas de caça na floresta e leituras de diários de escritores a respeito do conceito de identidade francesa. Felizmente, o resultado é mais coerente do que a dispersão cômica do filme romeno. Taste oferece uma experiência estética radical, confinando quatro mulheres vietnamitas e um homem senegalês dentro de imensos galpões, onde realizam trabalhos braçais em silêncio. Cada composição lembra alguma fotografia sinistra, ou talvez um filme de terror.
Já Social Hygiene, do sempre criativo Denis Côté (de Antologia da Cidade Fantasma), representa a melhor obra sobre distanciamento social na 71ª Berlinale. Trata-se de uma comédia corrosiva e perfeitamente coesa: o cineasta canadense dispõe seus personagens sobre um gigantesco gramado, onde encenam histórias de amor e brigas sem se aproximarem uns dos outros. A disposição tende ao ridículo, e reafirma nossa necessidade de união e coletividade, enquanto critica as relações de gênero.
A juventude e o cinema vale-tudo
A Mostra Geração ofereceu obras exigentes em termos estéticos, e astuciosas na maneira de lidar com as angústias da juventude. O principal vencedor, The Fam, corresponde novamente a um filme fragmentado. O diretor Fred Baillif divide a sua narrativa entre o ponto de vista de uma dezena de personagens, indo e voltando no tempo, efetuando flashbacks e inserções poéticas de natureza documental. O excepcional Summer Blur, primeiro longa-metragem da chinesa Han Shuai, aposta na opressão de uma família confinada numa casa minúscula durante o verão.
Se a dispersão de estrutura e estética dominou a 71ª Berlinale, ela se tornou ainda mais forte na Mostra Forum, dedicada a produções experimentais. Dentro deste recorte, a multiplicação de recursos foi tão forte que resultou em obras beirando a aleatoriedade: o argentino-brasileiro Esquí, por exemplo, combina entrevistas presenciais, material de arquivo, flashes de película queimada, monstros de olhos vermelhos em Bariloche, erros de gravação, making of, manual de utilização de esquis e ensaios sensuais com o diretor nu sobre a neve.
Em chave mais coerente, o canadense Ste. Anne debate uma reunião familiar, mas evitando revelar o rosto dos protagonistas, trocados por partes de seus corpos e objetos capazes de representá-los – mesmo caminho utilizado pela fantasia What Do We See When We Look At The Sky?, na mostra competitiva. Esta fábula contém cachorros pensantes, feitiços anunciados pelo vento, Copa do Mundo de futebol e campeonato de ingestão de biscoitos.
Cinema brasileiro e o “mais é mais”
A criatividade, nesta edição, coincidiu com uma lógica de excessos: houve diversas produções inchadas em duração, cenários, locações, personagens e ideias. Não por acaso, os melhores títulos (Petite Maman, Social Hygene) foram obras curtíssimas, mais interessadas em alternativas poéticas à pandemia do que em explodi-las com luzes, cores e ferramentas artificiais inseridas em pós-produção (colagens, narrativa em episódios).
O cinema brasileiro pode se orgulhar. A Última Floresta, de Luiz Bolognesi, constitui o filme mais forte de sua cinematografia, além de um documentário capaz de unir a busca por uma estética precisa e a discussão política potente. Os Últimos Dias de Gilda, de Gustavo Pizzi, se tornou a primeira série nacional selecionada na Berlinale, enquanto Se Hace Camino al Andar, de Paula Gaitán, levou uma experimentação coesa e profunda ao festival – sinal de que a experimentação não precisa ser sinônimo do “vale tudo” na montagem.
Por fim, a 71ª edição pode ser lida enquanto sintoma da nossa dificuldade de responder artisticamente ao período de ruptura da coletividade. Afinal, ainda estamos imersos nela, o que dificulta o distanciamento crítico. Entre os dramas minimalistas e as comédias escrachadas, o consenso se encontra na resposta pela radicalidade: as obras forneceram, em seu discurso e estética, propostas agressivas do uso da linguagem cinematográfica. Veremos o que a edição 2022 trará ao público, à imprensa e à indústria, após mais um ano aparentemente tomado pelas restrições sanitárias.
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